quarta-feira, novembro 02, 2011

Transtorno do pânico e depressão

Em medicina, diagnosticar é reconhecer a natureza de um transtorno ou uma enfermidade por meio de sintomas, sinais, origem, evolução ou outras características diferenciáveis
Antonio Egidio Nardi
Livre-docente e professor-associado do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ) CRM 5243048-6

Introdução

Em medicina, diagnosticar é reconhecer a natureza de um transtorno ou uma enfermidade por meio de sintomas, sinais, origem, evolução ou outras características diferenciáveis. Toda a classificação é um dado de conhecimento, sensível à visão de mundo de quem a elabora. Sofre influências de vários fatores subjetivos e objetivos. Não é um resultado apenas técnico nem apenas científico ou unicamente um instrumento político; é tudo isso junto. Cabe a quem classifi ca saber de sua utilidade e seus limites.

As classificações atualmente utilizadas (CID-10 e DSM-IV-TR) são elaboradas com base no modelo médico que adota o paradigma neokraepeliniano. Essas classificações aumentaram a "cobertura diagnóstica", passando a incluir maior número de categorias antes inexistentes. Quanto mais aumentamos a variedade de transtornos incluídos em um sistema diagnóstico, maior é a probabilidade de um paciente satisfazer critérios para múltiplos transtornos e apresentar-se com uma comorbidade. A classifi cação é feita em bases descritivas, isto é, a partir da presença de uma sín-drome e não em bases etiológicas. Portanto, os critérios devem ser utilizados apenas como diretrizes diagnósticas e não devem superar o julgamento clínico.

TRANSTORNO DO PÂNICO

Goisman et al. (1995)1 observaram que o transtorno do pânico (TP), com ou sem agorafobia, coexiste com pelo menos outro transtorno de ansiedade em 37% dos casos. Klerman et al. (1991)2 observaram que 33% dos 254 indivíduos com TP tinham agorafobia comórbida e 72%, agorafobia, depressão maior, abuso de álcool ou drogas em associação comórbida. Johnson et al. (1990)3 notaram, com base no Epidemiological Catchment Area (ECA), que mais de dois terços dos indivíduos com TP durante a vida preencheram critérios diagnósticos para mais de um dos dez outros diagnósticos psiquiátricos pesquisados. Cassano et al. (1999)4 relataram que 70% dos 302 pacientes com diagnóstico atual de TP, segundo o DSM-III-R, também apresentaram pelo menos um dos sete outros diagnósticos adicionais pesquisados, dos quais o transtorno de ansiedade generalizada foi o mais comum.

Os dados, contudo, não devem ser utilizados para sustentar uma relação causal. Há controvérsia se essa depressão comórbida representa uma depressão "verdadeira" ou uma forma de depressão reativa ou de desmoralização. É possível que, ao se fazer um diagnóstico concomitante de TP, se identifi que um subgrupo de pacientes com TP que apresentem determinados traços de personalidade, tais como: baixa auto-estima, extrema autoconsciência e tendência para auto-avaliação negativa. Tal subgrupo poderia ser considerado em risco para a depressão, tendo em vista os fatores psicológicos, particularmente cognitivos. Além disso, o isolamento social experimentado em conseqüência à agorafobia poderia contribuir para uma propensão em tornar-se deprimido. No tratamento de pacientes com TP em associação com depressão, deve-se utilizar preferencialmente um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS). Os ISRSs têm demonstrado eficácia em ambos os transtornos, associada à boa tolerabilidade.

Depressão

O National Comorbidity Survey (NCS) mostrou que os transtornos de ansiedade e depressão coocorrem com grande freqüência, e a grande parte dos casos de depressão é secundária a um transtorno de ansiedade (67,9%), especialmente TP. Há relatos de que 35% a 91% dos pacientes com TP também apresentam um episódio depressivo no decorrer da vida. Roy-Byrne et al. (2000)5 encontraram freqüência elevada da associação TP e depressão maior na população geral com base em dados colhidos no NCS. Essa comorbidade foi associada com maior gravidade e persistência dos sintomas, comprometimento funcional, busca de ajuda e comportamento suicida. Um dos achados clínicos mais consistentes encontrados nos pacientes com TP e depressão, em comparação com pacientes com os dois transtornos isoladamente, tem sido as maiores taxas de ideação suicida e tentativas de suicídio. No estudo de Zürich (1990)6, 30% dos pacientes com tal comorbidade já haviam tentado o suicídio aos 28 anos.

Em outro estudo de seguimento por dez anos de 954 pacientes com depressão maior, Fawcett (1992)7 observou que a presença de ataques de pânico foi um dos fatores que predisseram suicídio durante o primeiro ano de maneira mais consistente.

Coryell et al. (1988)8 observaram que os pacientes deprimidos com ataques de pânico apresentaram sintomas depressivos mais graves do que pacientes com depressão, mas sem TP durante os últimos seis meses de um seguimento de dois anos. Além disso, pacientes deprimidos com ataques de pânico e pacientes com TP e depressão maior secundária tiveram menores taxas de recuperação no período de seguimento do que aqueles com depressão isoladamente. Também foi observado que pacientes com TP e depressão secundária apresentaram maior comprometimento do desempenho no trabalho do que pacientes nos dois outros grupos. Os dados de maior gravidade, incapacidade e cronicidade da doença entre os pacientes com TP e depressão comórbidos foram também demonstrados por outros grupos.

No estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)9, em 1993, com 25.916 pacientes atendidos em rede de atenção primária à saúde em 14 países, observou-se que a comorbidade psiquiátrica foi comum, com 9,5% dos pacientes apresentando dois ou mais diagnósticos, de acordo com o CID-10. Foram encontrados altos índices de transtornos ansiosos (10,2%) e depressivos (11,7%). Além disso, a coocorrência desses transtornos foi particularmente grande (4,6%). A associação entre depressão e transtornos de ansiedade, incluindo o TP, foi mais forte do que entre os próprios transtornos de ansiedade. Por exemplo, a chance de os pacientes deprimidos apresentarem TP comórbido foi 12 vezes maior do que o esperado, nos pacientes com transtorno de ansiedade generalizada foi sete vezes maior. Pacientes com ataques de pânico atuais ou prévios também apresentaram alta comorbidade com outros transtornos psiquiátricos, em vez de um diagnóstico de TP. De um total de 227 pacientes, 138 tinham diagnóstico de TP com ou sem agorafobia, 61, diagnóstico de outro transtorno (por exemplo, depressão ou transtorno de ansiedade generalizada), e 26, sintomas psiquiátricos subliminares. Somente dois pacientes não apresentaram diagnóstico psiquiátrico ou sintomas subliminares. Donald Klein (1993)10 criou o conceito de síndrome de desmoralização, de difícil validação, mas clinicamente útil, sugerindo que, em boa parte dos casos de TP, as depressões não são doenças depressivas e sim conseqüências psicológicas compreensíveis em razão do sofrimento e da incapacitação impostos pelo transtorno de ansiedade.

Faltariam nesses quadros de desmoralização as características endogenomórfi cas, como:anedonia, retardo psicomotor, variação circadiana, insônia terminal. O clínico pode e deve tentar diagnosticar o tipo de depressão que seu paciente com TP apresenta. Se for uma síndrome de desmoralização, serão proeminentes as características como baixa auto-estima, dependência, sentimentos de incapacidade, excesso de culpa, irritabilidade e explosões emocionais. Algumas diferenças em termos de resposta ao tratamento foram encontradas entre o grupo de pacientes com depressão e TP comórbidos e o grupo dos pacientes com apenas um transtorno isoladamente. Entre os pacientes com depressão maior hospitalizados, Grunhaus et al. (1994)11 observaram que aqueles com TP respondiam pior ao tratamento farmacológico. Após três semanas de tratamento, somente 15% dos pacientes com a comorbidade demonstraram redução significativa dos sintomas, em comparação com 50% daqueles com depressão maior isoladamente.

A escolha de um antidepressivo com melhor perfil de efeitos colaterais, tais como os ISRSs, é um caminho para evitarem-se sensações físicas semelhantes ao pânico, aumentando as chances de adesão ao tratamento desses pacientes e diminuindo o risco de suicídio. A sertralina como opção eficaz e segura para o tratamento da depressão associada ao transtorno do pânico Desde sua introdução na prática clínica, os ISRSs tornaram-se os medicamentos mais amplamente utilizados nas diferentes formas de depressão e de transtornos de ansiedade. Diferentemente do que se pensava inicialmente, os ISRSs têm mecanismos de ação bem diferenciados, o que se traduz em um perfi l de efeitos adversos variados e diferentes interações medicamentosas. A sertralina é um antidepressivo do grupo dos ISRSs. É bem absorvida por via oral, atingindo o pico de concentração plasmática entre 6 e 8 horas após a ingestão. Liga-se a proteínas plasmáticas (98%). É metabolizada no fígado, gerando a desmetilsertralina, um metabólito ativo. A inibição do CYP450 é mínima, pouco interferindo no metabolismo de outras drogas que utilizam a mesma via de metabolização: antidepressivos tricíclicos, fenotiazinas, carbamazepina etc. A sertralina e seu metabólito, a desmetilsertralina, são inibidores fracos de 2C9, 2C19, e 3A4, responsáveis por relatos de casos isolados de aumento de concentrações de fenitoína, varfarina e ciclosporina.

A sertralina ainda pode aumentar levemente a concentração máxima de diazepam e de pimozida. A sertralina inibe a glicuronidação e resulta em concentrações tóxicas de lamotrigina. A sertralina e seu metabólito são vulneráveis a drogas como a carba mazepina e a fenitoína. A farmacocinética da sertralina é linear nas doses entre 50 e 200 mg/dia. Sua meia-vida está em torno de 24 horas. O tratamento deve ser iniciado com dose de 50 mg/dia em dose única diária. A dose terapêutica fica em geral em torno de 100 mg/dia, mas podem- se utilizar até 200 mg/dia. A suspensão da droga deve ser gradual para evitar que ocorram sintomas de retirada, como tonturas, náuseas e perturbações do sono, entre outros.

Aconselha-se a retirar 50 mg/semana. Os efeitos adversos mais comuns da sertralina são: boca seca, náusea, diarréia, fezes amolecidas, sonolência e tremores. A única contra-indicação absoluta é a associação aos antidepressivos inibidores da monoaminoxidase (IMAOs). O tratamento da depressão e dos transtornos de ansiedade pode envolver o uso de associações de medicamentos, como antidepressivos, ansiolíticos e es- tabilizadores do humor. Além disso, os pacientes acometidos por transtornos do humor ou de ansiedade permane- cem sob risco de desenvolver enfermi- dades clínicas que exigirão tratamento medicamentoso agudo ou crônico. É extremamente comum que pacientes em uso de antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores do humor recebam prescrições de outros medicamentos. As interações medicamentosas mais estudadas são as causadas pela ação das drogas sobre as enzimas do sistema P-450. O interesse por esse assunto foi exponencialmente aumentado a partir de uma interação medicamentosa que envolveu dois antidepressivos: em 1988, um grupo de pesquisadores norte-americanos inferiu que teoricamente a adição da desipramina à fluoxetina seria capaz de gerar um composto com potenciais benefícios terapêuticos. Na prática, a associação revelou-se um fracasso. A explicação foi que a desipramina é metabolizada principalmente pela via 2D6, inibida pela fluoxetina. A administração simultânea dos dois fármacos, portanto, leva à acumulação da desipramina.

Para a melhor compreensão das interações medicamentosas, devemos entender o sistema P-450 como enzimas com o papel natural de metabolizar tanto compostos endógenos quanto provenientes do meio ambiente. O papel dos medicamentos com relação a essas enzimas pode ser de substratos, quando simplesmente utilizam uma enzima específica como via de metabolização; inibidores, quando diminuem a efi ciência da enzima; e indutores, quando aumentam a efi ciência da enzima. As drogas podem ser inibidoras ou indutoras de vias das quais não são substratos e podem também utilizar mais de uma via para sua metabolização. As principais enzimas do sistema P-450 na espécie humana são 2D6 e 3A4, que respondem por cerca de 80% da metabolização de fármacos.

Outras formas importantes são 1A2, 2E1 e 2C19.
Existe uma considerável variabilidade interindividual e entre grupos étnicos quanto à efi ciência dessas enzimas. Na tabela 1, citam-se as principais características de interação medicamentosa dos antidepressivos ISRSs. Apresentam-se as enzimas do citocromo P-450 em que os ISRSs são metabolizados e inibem o metabolismo de enzimas.

Relacionamos ainda as características farmacológicas dos ISRSs e as principais interações da sertralina. Os ISRSs são extremamente diferentes entre si quanto à infl uência sobre as enzimas do sistema P-450 e à propensão a interações medicamentosas. Ao prescrevermos antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores do humor, devemos estar atentos à possibilidade de interações medicamentosas. Na maioria absoluta dos casos, os pacientes que recebem as prescrições serão genotípica e fenotipicamente normais e metabolizarão as drogas adequadamente. Em situações especiais, de polimedicação e perda ou aumento da eficiência dos sistemas enzimáticos, os problemas podem ocorrer. Conhecer o conceito e as principais alterações permite contornar o problema sem superestimá-lo ou subestimá-lo.

Conclusão

O TP está freqüentemente associado a outros transtornos mentais, principalmente depressão e transtornos de ansiedade (fobia social e transtorno de ansiedade generalizada), e abuso de drogas (álcool e benzodiazepínicos). Essas comorbidades podem dificultar o diagnóstico, influenciar o tratamento e o prognóstico e até mesmo aumentar o risco de suicídio. A comorbidade TP e depressão exige atenção especial já que se comprovou que tal associação é freqüente, difi culta o tratamento e aumenta o risco de suicídio. A sertralina, um antidepressivo ISRS, é uma opção eficaz, compoucos efeitos colaterais, e segura nas interações medicamentosas em pacientes com a comorbidade TP e depressão





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Referências bibliográficas

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