ENTRE A CIÊNCIA E A FEITIÇARIA, OU COUSTEAU, ARQUIMEDES E IBSEN
Dr. Claudio Lyra Bastos
En pleine eau, un céphalopode est sans résistance. Pour lutter, il faut un point d’appui. Gare au plongeur qui lui laisserai la possibilité de se racrocher aux rochers par deux ou trois tentacules![1]
Jacques-Yves Cousteau, Pieuvres
Num daqueles antigos documentários sobre o mundo submarino, o célebre capitão Cousteau mostrava um mergulhador manipulando um polvo enorme, de um tipo que vive nas costas frias do noroeste americano. Ele destacava a imensa força do molusco, dez vezes superior à do homem, relativamente. Um polvo de 50 quilos seria capaz de mover uma tonelada. No entanto, na sua condição de invertebrado, sem quaisquer estruturas sólidas internas, o polvo não tem como fazer nenhum braço de alavanca, e toda a sua poderosa musculatura só pode ser posta a funcionar quando ele se agarra a algum ponto de apoio. Solto na água, ele se torna pouco mais que um brinquedo de borracha. Anos atrás, quando a vi pela primeira vez, essa cena me impressionou muito, mas só lhe pude alcançar inteiramente o significado metafórico agora, após escrever as páginas que se seguem.
Vemos hoje em dia a maior parte dos psicotrópicos ser prescrita por clínicos, neurologistas, ginecologistas, geriatras e endocrinologistas, a grande maioria sem qualquer tipo de preparo nessa área. Da mesma forma, a psicoterapia, incluindo a psicanálise, é atualmente predominantemente praticada por psicólogos, assistentes sociais outros profissionais. Na área social, os psiquiatras tem sido deixados de lado em todos os projetos de saúde pública. No entanto, em qualquer desses campos do saber, são justamente os psiquiatras as figuras de destaque na produção de conhecimento e de maior repercussão na sua expressão pública. São contradições impressionantes, às quais não podemos deixar de prestar atenção e tentar compreender.
Este texto, apesar da imensa abrangência teórica dos assuntos de que se obriga a tratar, originou-se fundamentalmente da prática psiquiátrica. Foi apenas a partir do contato constante com os pacientes, na vivência clínica diária – em consultórios, ambulatórios, enfermarias e emergências de hospitais gerais e psiquiátricos – que acabei, paulatinamente, por constatar que a psiquiatria, mais do que qualquer outra especialidade médica, deve ser vista como um todo (o fato social total de Marcel Mauss), não sendo epistemologicamente concebível a divisão ou a setorização do seu saber. A contínua observação de erros, omissões, vieses e incoerências comuns à prática hospitalar e ambulatorial me foi trazendo paulatinamente à luz a profundidade e a relevância dos princípios fenomenológicos e do enfoque etnopsiquiátrico, assim como dos seus desdobramentos teóricos e práticos sobre a clínica.
Devo ressaltar que, por mais ácidas que venham a parecer certas críticas que faço ou veiculo, não tenho, em nenhum momento, a intenção de contribuir para qualquer pretensa “desconstrução” da psiquiatria. Apesar de dever muito à antropologia no meu entendimento da realidade psiquiátrica, não pretendo me colocar na posição de um antropólogo supostamente neutro. Esta perspectiva é a de um psiquiatra convicto, um médico que atende pacientes em consultório, em ambulatórios e enfermarias, e a minha intenção é contribuir para a construção de uma psiquiatria mais consistente. Atendo pacientes e famílias, faço psicoterapia, medico, vou a hospitais, supervisiono, faço perícias. Cabelo, barba e bigode: serviço completo.
Certa vez um amigo, professor de ciências sociais, me apresentou, em tom divertido, como “Um psiquiatra que acredita em psiquiatria!” Além do mais, não nutro qualquer simpatia pela observação neutra ou isenta; até porque, como Nelson Rodrigues, não creio em imparcialidades, e acho que devemos dizer logo a que viemos.
Isto não é um comentário acadêmico acerca das contradições e incoerências da psiquiatria, mas um trabalho motivado pela essência da medicina – a base da psicopatologia – e movido pela angústia médica de melhor tratar dos doentes, a qual não merece que se cometa a superficialidade de confundi-la com o furor curandi. Assim, sou francamente pela total preservação do modelo médico, só que o meu não é esse modelo tecnicista e globalizado que anda por aí, não. Medicar e medicalizar são coisas completamente diferentes. É preciso definir os termos, para não confundir racionalidade com racionalismo nem ciência com cientificismo.
Refletir sobre as tendências da psiquiatria, passando pelas suas relações com a biologia, a psicologia e a sociologia, poderia ser aparentemente uma tarefa hercúlea, de uma pretensão intelectual enorme e vã. No entanto não podemos deixar de considerar que reflexões algo semelhantes a estas são feitas diariamente, obrigatoriamente, por milhares de psiquiatras, em seu trabalho diário e em suas horas de lazer. Não há como escapar de fazê-las, face aos problemas que a clínica nos traz a todo momento. Assim, elas são feitas porque devem ser feitas, porque precisam ser feitas, porque têm que ser feitas; mesmo que talvez até sejam, no mais das vezes, malfeitas. Minha única desculpa para me meter a tratar de tantos assuntos diferentes é que, para um psiquiatra, nada do que é humano lhe pode ser indiferente, mesmo no sentido estritamente profissional.
Espero que o benévolo leitor me perdoe pelo número talvez excessivo de citações, mas sempre me pareceu importante mostrar as origens e as diversas formas sob as quais os problemas surgem, assim como as suas conseqüências e desdobramentos. Na universidade, hoje em dia, é comum que a garotada pense que está adquirindo visão crítica porque lhes deram para ler alguns estudos críticos, sem que jamais tenham tomado conhecimento direto dos objetos ou dos assuntos criticados. Assim, acabam repetindo idéias prontas e frases feitas, seja na fantasia de que estão realmente pensando, seja pelo pavor de pensar por si mesmos.
Comigo ocorreu que, diversas vezes, ao levar textos, projetos ou trabalhos de pesquisa – que não se enquadravam dentro de uma única escola ou linha rígida – para ouvir sugestões ou opiniões de colegas, visse neles uma certa angústia, por não saberem como organizar o pensamento sem referências óbvias nem as costumeiras chaves interpretativas. Com um ar desconfortável, vinha a rápida resposta: “Mas isto é Psicopatologia, porque você não fala com Fulano?” Psicanálise? “É com Sicrano” Ou, logo adiante, “Mas se se trata de Antropologia, porque você não consulta Beltrano?” E por aí vai. A minha vontade é a de pegar a pessoa pelo colarinho, sentá-la na cadeira e dizer: “Eu não quero falar com fulano nem beltrano; eu quero falar com você. Dê a sua opinião!” Às vezes tenho a impressão de que certos professores são incapazes de dizer se preferem picolé de abacaxi ou chicabom sem consultar a literatura ou fazer uma reunião de departamento.
Samuel Johnson, elogiando o ambiente das tavernas do século XVIII, dizia que nelas podia discutir com liberdade e espírito crítico (“I dogmatise and am contradicted, and in this conflict of opinion and sentiments I find delight.”[2]). Ainda hoje vemos que nas conversas nos botequins à volta da universidade, livres das pressões acadêmicas e políticas, muitas vezes se raciocina melhor que dentro dela.
Decidi-me assim a ir logo apresentando preliminarmente as idéias fundamentais que discuto, para depois retomo diversas vezes em outros textos, como num Leitmotiv wagneriano.
A primeira idéia é a de que a psiquiatria é algo tão antigo como o próprio homem, e fazendo parte da medicina, é investida deste mesmo aspecto simbólico, sacralizado, ainda que todas as correntes ideológicas psiquiátricas tentem laicizá-la. Reconhecer este aspecto mitológico intrínseco é o primeiro passo para preservar a ciência e evitar que se transforme em ideologia, ou religião laica. Ao contrário do que gostam de pensar certos foucaultianos, a psiquiatria não foi inventada nos séculos XVIII e XIX. Aquilo que poderíamos chamar talvez de “psiquiatria moderna” é que surgiu com Pinel no iluminismo, quando a razão começou a ser divinizada e cultuada. A morte de Deus, a perda das referências absolutas e o desenvolvimento do individualismo mais uma vez forçaram a separação entre as eternas dicotomias da mente humana, sempre oscilando entre a lógica e a intuição, o concreto e o simbólico, o objetivo e o subjetivo, o mythos e o logos dos antigos gregos, produzindo uma razão destituída de intuição, de onde se originou o racionalismo e a sua cria, o cientificismo.
Um outro ponto importante é a constatação de que a nossa quase irresistível tendência às dicotomias e aos maniqueísmos não nos permite trabalhar com níveis diversos de causalidade. Num momento como o atual, em que o racionalismo e o irracionalismo novamente se confrontam, torna-se claro que ambos são frutos de fundamentalismos, igualmente afastados da racionalidade. Se, por um lado o fanatismo religioso nega a razão em função da Verdade Revelada, o fanatismo racionalista busca uma Verdade Absoluta no que é relativo e tenta compreender o todo esmiuçando as partes, ou dedica-se a mapear o infinito compondo um mosaico de detalhes, como um daqueles quadros fragmentados de esquizofrênicos como o nosso Arthur Bispo do Rosário ou profetas gráficos como o conhecido Gentileza ou o pregador americano Howard Finster.
Por fim, temos a afirmação de que os conceitos psiquiátricos não são, em si mesmos, confusos, pouco inteligíveis ou complicados. As teorias que tentam explicá-los, sim, geralmente o são. A realidade da mente humana não é simples nem linear; trata-se de uma estrutura que funciona em rede, complexa e multidimensional, cujas alterações não podem ser avaliadas por medidas discretas e métodos simplórios. Até mesmo a mente de um cão é complexa demais para ser avaliada por escalas lineares. Isto não nos impede de entender os cães, cuidar deles e prever, até certo ponto, o seu comportamento. Podemos fazer o mesmo com as pessoas. Um feiticeiro experiente faz isso muito bem. A questão é: como?
Um Inimigo do Polvo
Cave ab homine unius libri
[Cuidado com o homem de um só livro]
Santo Tomás de Aquino
No campo da psiquiatria surgiram três fluxos ideológicos básicos: o biologismo, o psicologismo e o sociologismo. O primeiro aderia ao culto do racionalismo, dedicando-se à idolatria da razão, o último surgiu como reação, pugnando pela desmistificação da razão e até mesmo valorizando o irracionalismo. À guisa de síntese, criou-se um produto híbrido –a psicanálise – que oscilava entre os dois sem jamais chegar a realizar o seu objetivo, assemelhando-se por vezes a uma espécie de agente duplo, daqueles que ninguém sabe – talvez nem ele mesmo – de que lado realmente está.
Destas vertentes ideológicas fundamentais surgiram todas as outras seitas menores com suas ramificações. Seus princípios já se faziam presentes nos debates dos pensadores gregos, desde há vinte e cinco séculos. Nenhuma delas traz qualquer novidade significativa para o pensamento humano. Nem mesmo a concepção do homem como mecanismo, com engrenagens complexas a serem decifradas pela ciência, é recente. La Mettrie, no século XVIII, escreveu vários livros para demonstrar exatamente isso. As concepções opostas a esta, evidentemente, também são antiqüíssimas. Trezentos anos de discussões acaloradas demonstram sobejamente que qualquer idéia que surja dentro deste campo – seja lá qual for a sua natureza ideológica – pode ser encarada tanto como “moderna” quanto como “ultrapassada”.
Metodologicamente, cabe às neurociências estudar de forma privilegiada os aspectos biológicos da vida psíquica, assim como à psicologia privilegiar os aspectos mentais e às ciências sociais, por sua vez, puxar a brasa para a sua sardinha. Até aí tudo bem. Outra coisa é acreditar que tudo possa ser explicado pela biologia ou que instâncias como “orgânico”, “mental” ou “social” existam efetivamente, como realidades independentes. As metáforas usadas para explicar o funcionamento da mente permanecem basicamente as mesmas há 25 séculos: da harmonia entre os humores ao equilíbrio energético das catexes e ao balanceamento bioquímico dos neurotransmissores, pouco mudou. Não que sejam metáforas ruins; têm lá a sua utilidade, enquanto sejam consideradas aquilo que são – metáforas – e não aquilo que não são: profundas explicações científicas. Das metáforas, não se diz se são falsas ou verdadeiras, mas apenas boas ou ruins. Da mesma forma que a psicanálise, a psiquiatria biológica e a social não passam de conjuntos de metáforas que procuram organizar conhecimentos essencialmente intuitivos em corpos teóricos.
A seguir, podemos considerar que uma psiquiatria científica, primordialmente ligada à clínica, teria existência apenas de uma maneira virtual, como breves lampejos dentro da obscuridade produzida pela profunda influência das ideologias predominantes no momento. Os temas fundamentais da psiquiatria – a irracionalidade, a incontrolabilidade, a imprevisibilidade, a indeterminação e a inadequação humanas – são, além de complexos, pesados demais para que se lhes permita um desenvolvimento mais solto, mais científico, menos ideologizado. O psiquiatra, como o médico[3] em geral, nunca pode deixar de ter em vista que é um feiticeiro, e que os muitos milênios que essa nobre profissão tem atravessado não serão apagados por uma ou duas décadas de tecnicismo barato. A psicopatologia é um conhecimento que não pode ser adquirido exceto através do exercício da medicina, e a praxis desta tekne exige princípios éticos, estéticos e epistemológicos que a formação atual do médico insiste em negligenciar.
Observamos ainda que a antropologia – ou a etnopsiquiatria – através do conceito fundamental de culture-bound syndrome, revela a grande fragilidade de todos esses constructos teóricos explicativos. Todas essas abordagens explicativas cumprem certas funções sociais, e assim, dispõem de uma certa cota de poder. Ao procurar ampliá-lo, extendendo seus domínios de influência, todas acabam caindo nos mesmos problemas epistemológicos e operacionais básicos: reducionismo desmedido, ideologização das questões, sectarização, raciocínio circular e progressivo afastamento das bases clínicas. Menos como o sábio de Siracusa e mais como o polvo de Cousteau, tornam-se totalmente inermes quando perdem os seus pontos de apoio, que são a relação com o paciente, a vivência psicopatológica e a experiência clínica, ou na linguagem psi, a escuta e o discurso do Outro.
Cada segmento acadêmico se esmera na crítica de todos os demais, mas essa crítica se revela absolutamente estéril quando chega na prática clínica, que já está dividida em práticas setoriais relacionadas aos grupos sócio-econômicos e culturais a que se dirigem. Da mesma forma que para os personagens da peça de Ibsen de onde saiu o trocadilho deste subtítulo, a verdade em nada lhes interessa.
Procuro aqui resumir, de forma panorâmica e crítica, os problemas fundamentais da psiquiatria atual, suas origens e desdobramentos nas principais correntes ideológicas atuais. Assim, trocando em miúdos, constato que nenhuma abordagem explicativa constrói uma psicopatologia consistente nem satisfaz às necessidades da psiquiatria por três razões principais: a) questões intrinsecamente complexas não podem ter soluções simples, lineares; b) “doença” (o pathos dos gregos) não é um conceito científico, mas médico; c) os vieses políticos e ideológicos não são evitáveis, por fazerem parte do processo investigativo. Seja quanto à ética seja quanto ao método, não é possível escapar totalmente nem da religião nem feitiçaria. Quem deseja ser psiquiatra tem que conviver com isso. Proponho um retorno à formação psiquiátrica mais profunda, mais consistente filosoficamente que é a psicopatologia fenomenológica, clínica, aqui também em seu sentido grego (de kline: leito).
Talvez seja necessário frisar que esta abordagem não é uma escola, nem uma corrente, nem uma teoria, nem um sistema explicativo, mas apenas uma atitude frente ao fenômeno humano. Também não se pretende “ateórica” como os DSMs, por não negar as teorias; mas poderia ser entendida como “pré-teórica”, na medida em que coloca a relação antes das teorias, encarando-as sempre de forma crítica. Por essa simples razão a abordagem fenomenógica nunca chegou a produzir gurus nem a formar discípulos. Sendo assim, não tem claques, nem fã-clubes, nem torcidas organizadas, nem nichos acadêmicos. E nem fantasias de que “a verdade vos libertará”...
Iatros, pathos, kline
Na definição dos papéis representados por essas três palavrinhas gregas se resume toda a discussão deste texto. A clínica das doenças mentais é a grande fonte de saber sobre a mente humana. O recente e extraordinário livro de Louis Sass, “The Paradoxes of Delusion”, demostra brilhantemente como o estudo da esquizofrenia vinha se ressentindo das abordagens de orientação deficitária[4], sejam jacksonianas ou psicanalíticas. Como bem frisou E. Minkowski, a psicopatologia deve ser muito mais uma rica psicologia do patológico do que uma mera patologia do psicológico, contruída à base de faltas e excessos. Essa abordagem vai ao encontro dos estudos dos sistemas complexos e dos processos não lineares de auto-organização, indo além das perspectivas explicativas mecanicistas do século XVIII que persistem até hoje. A psicopatologia não é apenas um caminho indispensável para o estudo da doença mental, mas uma trilha privilegiada para o conhecimento do homem, pela qual nem o filósofo nem o antropólogo têm livre passagem.
Negar a doença mental, ou tentar empacotá-la em mecanismos e sistemas são as alternativas empobrecedoras que estão sempre surgindo e ressurgindo, seja de forma religiosa, seja de forma acadêmica. Revelações místicas como os determinismos histórico, econômico, biológico, dentro dos cultos cientificistas, progressistas e evolucionistas, impregnam a vida acadêmica. Os muezins modernos entoam o seu Allah hu Akhbar! do alto das torres das mesquitas universitárias sem se dar conta de que todos os fanatismos começam da mesma forma, com a predominância das idéias sobre as coisas, mesmo quando sob a roupagem do pragmatismo utilitarista. Por essa, certamente nem Platão nem Santo Agostinho esperavam...
A ideologia individualista – assim como o seu contraponto coletivista – que produziu toda essa ramificação sectária atual, torna impossível qualquer conhecimento derivado da compreensão fenomenológica, porque este processo implica uma interação, sem a ruptura, das barreiras individuais. O espaço intersubjetivo no individualismo tem uma conotação negativa, e essas barreiras tendem a ser rigorosamente vigiadas.[5]
A ausência ou a perda da perspectiva compreensiva fenomenológica tem como inevitável conseqüência uma completa absorção da psicopatologia pelos elementos ideológicos particulares do ambiente histórico e cultural. Assim se formaram o psicologismo, o biologismo, o psicanalismo, o sociologismo, etc. A própria etnopsiquiatria, com sua proposta crítica, acaba tornando-se ela própria uma plataforma do relativismo estéril, puramente acadêmico, quando desligada da vida clínica. Os conflitos entre as seitas não passam na realidade de falsas disputas, meramente retóricas, já que os seus membros só dialogam mesmo entre si, em terreno previamente reconhecido e delimitado.
À diferença da prática clínica, no meio acadêmico a transdisciplinaridade – desde a sua conceituação por Jean Piaget, há mais de meio século – nunca deixou de ser um conceito meramente retórico e sem qualquer aplicabilidade real. Fala-se nisso como se fala em complexidade e em redes causais; é só um bordão a ser repetido a cada dez frases. Há décadas se fala nisso, mas tudo permanece desconexo como sempre esteve.
Acontece que na universidade, as diferenças de jargão e de metodologia não atendem apenas a fins epistêmicos, mas representam, fundamentalmente, demarcações de território. Quando os “proprietários” de algum determinado território de conhecimento ou pesquisa insistem em usar este ou aquele termo, citar este ou aquele autor ou aplicar tais ou quais métodos, eles não estão apenas sendo rigorosos nem rígidos, mas, básicamente, urinando no poste para mostrar aos colegas a sua área de ação. Se algum incauto se aproximar será advertido com um rosnado, e se entrar, inapelavelmente mordido.
Em todos vemos a tentativa de construção de um conhecimento a partir da proposta de uma objetividade operacional, epistêmica, mas nunca ontológica. A história nos revela esta como a única forma de abordagem capaz de suportar a imensa pressão desse processo de aculturação que atende pelo eufemismo de globalização. Só uma atitude fenomenológica prévia, que se reconhece subjetiva e imersa na vida cultural, pode permitir o respeito à clinica e à compreensão, proporcionando deste modo eventuais sínteses das recentes descobertas neurofisiológicas com as observações psicanalíticas, sociológicas e filosóficas, escapando à fragmentação conceitual, assim como aos aprisionamentos sistemáticos, às teorias hiperabrangentes e às especulações descabeladas.
O Elogio da Clínica
Fairy tales do not tell children the dragons exist.
Children already know that dragons exist.
Fairy tales tell children the dragons can be killed.[6]
GK Chesterton
O método clínico, baseado na fenomenologia, na relação interpessoal e na observação, continua sendo o único capaz de permitir um trabalho psiquiátrico de forma crítica, aberta, sem pretensões deterministas, seja como ofício, seja como pesquisa científica. O estudo de casos, com a compreensão esclarecida pelos conhecimentos advindos das diversas áreas permite ao profissional, assim como ao pesquisador, descobrir e fazer aflorar os elementos comuns, essencialmente humanos, no mar de interesses, particularidades e significações sociais, culturais e ideológicos em que todos vivemos.[7] Na frase de D. Widlöcher (1990, p.51): “L’important est d’utiliser un cadre conceptuel qui ne nous oblige plus à des choix idéologiques entre différents points de vue, sociologique, psychologique ou organique, mais d’intégrer ces différentes approches.”[8] Só uma visão essencialmente crítica como a da postura fenomenológica pode permitir a conjugação de visadas que sempre serão essencialmente diferentes, como a neurobiológica, a psicanalítica e a sociológica. Sem essas fundações humanas, a construção de modelos unidimensionais tende sempre a desmoronar.
Tratar é a arte de combinar de forma estratégica e judiciosa os recursos psicobiológicos e uma determinada técnica psicoterápica com a qual o terapeuta se identifique melhor, constituindo a essência da prática clínica. O uso de cada droga deve estar imbuído de significado para o paciente, da mesma forma como o feiticeiro dá significado ao uso de cada planta medicinal. Toda farmacoterapia é também psicoterapia e todo ritual psicoterápico é também um “remédio”. Assim, por exemplo, tratar um estado maníaco com lítio empreendendo uma terapia psicodinâmica simultânea ou subseqüente, prevenir uma deficiência mental metabólica (p. ex.: fenilcetonúria, hipotireoidismo, etc.), tratando as seqüelas com psicoterapia e terapia familiar são atitudes clínicas de natureza holística ou eclética no sentido estrito. Já, por exemplo, misturar psicofármacos diversos (um para cada sintoma), palpites psicanalíticos “selvagens”, técnicas sugestivas e aconselhamento,[9] é uma demonstração da confusão conceitual pseudo-eclética.[10] Esta postura é característica de quem não apenas desconhece a natureza e os métodos de cada abordagem, mas, pior ainda, não sabe nem por onde começar. Ignorar o aspecto simbólico da cura não é apenas um erro, mas é também uma armadilha, pois uma medicina que pretenda ser biológica ou científicamente “pura” acaba se vendo carregada de outros simbolismos, o que a torna um campo fácil para o charlatanismo cientificista.
Quando Freud afirmou que todo sonho correspondia a um desejo, ele trazia uma visão individualizada da vida inconsciente, ao contrário de José do Egito ou do profeta Daniel, para quem o sonho correspondia a um desejo de Deus. O próprio ato de interpretar e a natureza do vínculo que se estabelece têm muito maior relevância do que as revelações específicas que surgem. Assim, com as suas interpretações, ele não fazia propriamente uma descoberta científica, mas recuperava um instrumento de observação para um conhecimento mais completo do homem. E nisso consiste qualquer saber sobre um sistema complexo como o ser humano: elaborações metafóricas que procuram guardar uma certa relação com o conhecimento científico.
Certa vez, dando supervisão de psicoterapia, ouvi um extenso caso em que uma paciente, de formação espírita, relatara a origem de seus problemas no fato de que o pai era assim, a mãe era assado, a irmã desse jeito, o marido de outro, etc. Todos os terapeutas presentes deram as suas opiniões, interpretações, palpites e tudo o mais, de acordo com as teorias que haviam aprendido e com a sua experiência, ainda que modesta. Lá pelas tantas, no emaranhado de diversos pontos de vista, perguntaram qual a minha visão do caso. Na lata, pontifiquei: “Trata-se de um encosto, sem dúvida!” Todos riram, entre surpresos e divertidos, imaginando ser uma mera blague. Aproveitei o clima descontraído para mostrar que: a) a paciente conseguira mobilizar a todos com o seu problema, mesmo sem estar ali; b) atribuía a fatores externos toda a responsabilidade pelo que lhe acontecia; c) esperava passivamente da terapeuta uma solução completa, como um “cavalo”, e ela, sem o perceber, ia se “incorporando” à paciente. Assim, a “teoria do encosto” era o melhor insight que poderíamos fazer sobre tudo o que se passava com ela e a sua relação com o terapeuta e com todo o mundo mais. A partir daí, considerando essa visão própria do mundo, teríamos condições de pensar numa estratégia terapêutica coerente, sem deixar de atender à sua demanda de ajuda nem lhe tentar impor um arcabouço ideológico implícito em nossas teorias. Não estou dizendo, de forma alguma, que deveríamos trocar nossos divãs por atabaques, até porque ela procurou um consultório e não um terreiro. Apenas entendo que, ao sermos mobilizados pelo mundo simbólico do paciente, devemos pensar na mitologia, ou conjunto de metáforas, que melhor descreve o que se passa naquela relação, sem prejuízo de quaisquer outras abordagens.
Quando um psiquiatra “biológico” prescreve um medicamento, mesmo que ele não saiba ou não queira saber, no nível psicológico ele está participando de uma relação interpessoal – seja estabelecendo um vínculo, seja prevenindo-o – e também exercendo um papel psicoterápico, numa relação transferencial; além disso, no nível sócio-cultural, está-se utilizando da eficácia simbólica. Mesmo se este psiquiatra fosse um psicanalista, que procura instrumentalizar a transferência, também se utilizaria desta eficácia simbólica, exatamente da mesma forma que o “biológico”. Um bom clínico, com uma visão aberta, sem compromisso com teorias limitantes, compreende perfeitamente esse fato, e tira proveito dele na sua prática diária. A psicoterapia é plástica: pode ser internalizante ou externalizante, pode ser cíclica ou contínua, pode ser estreita ou larga, pode ser leve ou densa, pode ser individual, familiar ou grupal, pode utilizar psicofármacos ou não. Tentar ser “profundo” a todo custo acaba levando à mesma perda de perspectiva que tentar ser absolutamente “objetivo”. Ambas as posições são ingênuas, sem flexibilidade; pela sua “seriedade” feroz – e absoluta ausência de senso de humor – freqüentemente conduzem a situações à beira do ridículo.
A atitude preconizada pela APA (American Psychiatric Association), cujo poder normatizante abrange todo o mundo, tende a subordinar o pensamento psiquiátrico aos parâmetros acadêmicos e “científicos” predominantes. O livro-texto de psicoterapia editado pela APA (ver Gabbard, 1992), além de estar totalmente estruturado de acordo com o DSM, exibe todo aquele determinismo americano característico, com uma psicanálise cheia de enquadramentos e classificações. Nas palavras de Robert Wallerstein (prefácio, ibidem): “Atualmente é muito difícil obter financiamento governamental para pesquisas de tratamento psicoterapêutico ou psicofarmacológico, a menos que estejam inseridas nas categorias nosológicas do DSM-III...”. Tudo o que se refere à vivência clínica e às psicoterapias de base psicanalítica deve estar devidamente submetido aos padrões estabelecidos e “traduzidos” nessa linguagem.[11]
Em Harvard, Hobson e Leonard (2001) falam da crise da psiquiatria atual, e do vazio que ficou após o desaparecimento da psicanálise como terapia. Mas com aquela mesma superficialidade típica da APA, insistem nas neurociências como resposta ao mercantilismo, ao cientificismo e às HMOs. Afinal, a fé (na Bíblia, na Ciência, no Mercado) é a cura para tudo. Já em 1925, Abraham Flexner o próprio mentor da revolução científica positivista no ensino médico acadêmico americano – ocorrida no início do século XX – reconhecia e lamentava a falta de uma melhor formação cultural e filosófica dos estudantes[12]. Ao contrário do “publish or perish” de hoje, ele recomendava “Think much, publish little”.
Hoje, a universidade globalizou-se e burocratizou-se de tal forma que parece ter instituído uma espécie de “publish much, think little”, em que gente que mal conhece o vernáculo produz dúzias de artigos que bem poderiam ter sido feitos por um programa de computador. Samuel Johnson, que dizia não conversar com pessoas que escreviam mais do que tinham lido, talvez ficasse mudo em nossos dias.
Quando vemos na televisão um programa como “The Dog Whisperer” (O Encantador de Cães), em que um simples tratador de animais desvenda e resolve com maestria e inegável sucesso os mais diversos problemas comportamentais dos cães, desponta aos nossos olhos a absurda situação da psiquiatria atual. Cesar Millan, um mexicano baixinho e simpático, entra na casa das pessoas e – antes de querer resolver o problema ou enquadrar o cão num diagnóstico – faz a observação do phainomenon em que se constitui a relação entre o cão e os donos da casa. Ele vê toda a situação como o animal a vê: Quem lidera esta alcatéia? Qual o meu papel aqui? Ao mesmo tempo ele percebe como as pessoas da casa tratam o cão; geralmente a partir dos seus próprios desejos e conflitos, sem nada entender do que se passa entre o animal e a família. A prática de Millan torna evidente que nenhum modelo prévio dá conta da rede relacional que se forma em cada dupla cachorro-dono, que tem que ser compreendida fenomenologicamente, in loco. Os psiquiatras, no entanto, continuam insistindo desesperadamente em aprisionar suas mentes em cartilhas e catecismos.
Na Inglaterra, J.Cutting (1997) considera que as principais correntes de pensamento psicológico se esgotaram como modelos explicativos: o behaviorismo, a psicanálise e o cognitivismo, e que a psicopatologia e a filosofia se encontram através dos conhecimentos proporcionados pela neuropsicofisiologia. Procura demonstrar que as observações mais profundas de alguns filósofos encontram respaldo nas observações neuropsicológicas, assim como os quadros psicopatológicos, que sempre desafiaram todos os modelos explicativos. De acordo com ele,
“... the various elements of human duality, identified, in particular, by Schopenhauer, Bergson, Scheler, and Merleau-Ponty, are mirrored by the differences between the two hemispheres.” (Principles of Psychopathology, p. 497)
Observe-se que as considerações de Cutting apóiam-se em conhecimentos neuropsicológicos consistentes, assim como em observações psicopatológicas profundas. Apesar do grande arrôjo de suas propostas, ele não perde a perspectiva fenomenológica nem se lança em especulações cientificistas. Uma neuropsicologia solidamente constituída poderia colaborar para o entendimento de questões tão difíceis como o problema do inconsciente intencional, que separou a psicanálise de fenomenologistas como Sartre e Binswanger. É possível que o estudo de certos aspectos funcionais dos hemisférios cerebrais na constituição de uma mente dúplice possa esclarecer algo que nem a filosofia nem a psicologia têm conseguido.
No meio psiquiátrico da França, à parte os trocadilhos, jogos verbais e a logorréia de certos lacanianos (sejam pós, meta ou translacanianos) e de alguns outros neo-sofistas, parece que está sendo criada uma perspectiva séria de interação (não integração) entre a neuropsicologia, a psicanálise e a antropologia para a qual, naturalmente, a observação da realidade clínica tem que ser a única base aceitável. Talvez não seja de todo ingênuo esperar que essa postura possa vir paulatinamente a substituir as concepções estereotipadas do sectarismo. Afinal, os sofismas e as idéias inconsistentes podem eventualmente ser sedutores, mas nunca se mantém para sempre. Podemos ainda sustentar um certo otimismo ao constatarmos que se a psiquiatria ainda não morreu, provavelmente não morrerá tão cedo, talvez por ser absolutamente insubstituível. O fato é que nem a neurologia, nem a psicologia, nem o eterno charlatanismo têm conseguido suprir suficientemente as necessidades humanas.
E quanto à chamada “neuropsicanálise”? Ao que se vê, corre o sério risco de se tornar um junção mal-costurada de neurofisiologia superficial com palpites psicanalíticos sem fundamento; uma quimera que some os problemas de ambas sem resolver nenhum ou uma psicopatologia sem psicopatologia.. Não se pode construir uma teoria consistente da subjetividade humana a partir de observações precárias ou de enfoques enviesados.
A antropologia nos mostra que toda e qualquer medicina, seja aquela praticada por feiticeiros em plena selva, à mais moderna e sofisticada, tem necessariamente um aspecto simbólico e deve atender tanto à demanda do sujeito doente que sofre como à demanda da sociedade que se vê ameaçada pela doença. Quando tentamos praticar uma medicina científica – expurgada de toda a contaminação ritualística – não apenas abandonamos o doente e a sociedade às suas respectivas angústias, mas expomos ambos ao cientificismo, charlatanismo que procura satisfazer a essas necessidades através de uma mise-en-scène tecnológica. O papel simbólico do médico não pode jamais ser abandonado, como querem os psiquiatras biológicos, sociais e psicanalistas, preconizando o descompromisso e a diluição da responsabilidade clínica.[13] Até a tradicional Ética Médica vem sendo transformada numa formalista e burocrática “Bioética”, que se afasta de Hipócrates ao mesmo tempo em que se aproxima daquela “política de direitos humanos” vinculada à moralidade individualista igualitária, com toda a sua enorme dificuldade em suportar as diferenças.
Essa postura setorizante certamente tem um forte papel no afastamento dos estudantes de medicina da área psiquiátrica. Pesquisas americanas demonstram que o nível de engajamento nos programas atuais de residência em psiquiatria encontra-se atualmente entre 2% e 3%, bem abaixo dos 12% da década de 50. Um estudo publicado no American Journal of Psychiatry (1999;156:1397) dizia que os estudantes de medicina estavam interessados em carreiras médicas que proporcionem um trabalho interessante, que ajudem os pacientes, que tragam desafios intelectuais e que sejam baseadas em dados científicos. Nada disso parece ser encontrado na psiquiatria atual. O mais irônico nesses dados é que a psiquiatria globalizada atual se propõe justamente a ser “mais científica” e mais próxima à medicina do que se propunha a psiquiatria da década de 50. Paradoxalmente, naquela época em que a psiquiatria se mostrava peculiar, distinta das outras especialidades, e supostamente “menos médica”, ela atraía mais alunos de medicina do que agora.
O cerne do problema parece estar no conceito moderno do que é “medicina” e “modelo médico”. Já vemos atualmente, em toda a medicina, um claro apelo a um retorno ao papel simbólico do médico, sob a ameaça de se provocar uma verdadeira invasão do campo médico por curandeiros e charlatães (incluindo os tecno-charlatães) de toda a espécie, que correm a suprir essa necessidade humana da cura. Aos inimigos da boa prática psiquiátrica – dos antimanicomiais histéricos aos garotos-propaganda das empresas farmacêuticas – interessa a destruição do espírito crítico e desassombrado que norteia a verdadeira formação médica, entregando nossos pacientes, transformados em usuários, aos burocratas e aos mercenários. Não é à toa que se aliam com tanta facilidade, nos congressos e sociedades, num aparente paradoxo.
No campo específico da psiquiatria, não serão as pobres equipes multidisciplinares que irão substituir a carência de uma atitude transdisciplinar, que poderia ser chamada de antropologia clínica, a qual não pode se dar ao luxo de desconhecer nenhuma das necessidades humanas, concretas ou abstratas, práticas ou simbólicas. Numa primeira etapa de seu desenvolvimento, a etnopsiquiatria criou o conceito de culture-bound syndromes. Mais tarde esta postura foi encarada como etnocêntrica, pois pressupunha a existência de culture-free syndromes. Este conceito, se bem entendido – não significa a inexistência de fatores biológicos e psicológicos, mas apenas a sua contextualização cultural – é a chave para o estudo sério da psicopatologia.
Atualmente a psiquiatria antropologicamente sensível se mostra como a única psiquiatria viável, pois trabalha com os quadros nosológicos de uma forma compreensiva, sem relativismos radicais paralisantes (como muitas etnopsiquiatrias), sem a suposição ingênua de que a doença mental não existe (como a antipsiquiatria), sem esquemas explicativos deterministas (como a neuropsiquiatria e também a psicanálise) e sem abandonar a relação médico-paciente e a abordagem clínica por exaustivas listas de sintomas (como o DSM-IV). Certos sociólogos tendem a adotar uma visão “alternativista” da medicina, ignorando que a proliferação da medicina alternativa se dá muito mais por esta se pretender “medicina” do que “alternativa”. Isto evidencia que a sociedade ainda precisa de médicos, e que não se satisfaz apenas com health-care providers, burocratas conferidores de check-lists e preenchedores de prescriptions. Na falta de médicos, acaba-se recorrendo aos terapeutas alternativos e aos inevitáveis charlatães de plantão, que assumem gostosamente o aspecto simbólico que vêem negligenciado. Discursos New Age, ambíguos, pseudo-holísticos, pseudo-científicos e pseudo-filosóficos (como os de Maturana et caterva) substituem o conhecimento, face ao caos epistemológico em que a formação médica se encontra.
Uma psiquiatria antropológica não se pode desvencilhar da perspectiva clínica pragmática, cuja busca do conhecimento nunca deixa de lado o seu objetivo fundamental que é o bem-estar do doente. Pois é este doente, com suas queixas e sua irredutibilidade, que impede o psicofarmacologista, o psicanalista e o psiquiatra social de se assentarem comodamente nas suas poltronas acadêmicas. Como observou Tobie Nathan (Psychanalyse païenne, 1995, p.149): “Pour comprendre le fonctionnement de ces systèmes thérapeutiques, il est urgent que les recherches soient entreprises dans une perspective non pas seulement anthropologique, mais aussi clinique.”[14] Esta vinculação com a clínica é única a maneira de se evitar a formação de guetos, pois todas as vezes que se tenta criar um campo transdisciplinar, surge rapidamente uma tendência a torná-lo mais uma disciplina, ou seja, uma parte de um todo multidisciplinar, uma nova fatia na pizza acadêmica. A máquina universitária, da qual se espera a produção de conhecimento, é constituída por engrenagens absolutamente rígidas e setorizadas; novos nichos podem eventualmente ser criados, mas os espaços nunca podem ser transpostos. A forma se faz mais importante que o conteúdo e a metodologia interessa mais que o resultado.
Por exemplo, a Association for the Advancement of Philosophy and Psychiatry faz questão de dizer, em seu web site: "We are not interested in pedantry but rather in the concrete development and application of knowledge from both fields." No entanto, a sua revista "Philosophy, Psychiatry and Psychology" é caríssima, e todos os assuntos que apresenta são tratados de maneira bastante acadêmica, que dificilmente interessaria ao psiquiatra clínico em geral. Certa vez, durante um período de vacas gordas, em Paris, fui a um restaurante fino. Pedi informações sobre um prato de caça ao maître, que me atendeu prontamente. Quando perguntei sobre o molho, fez um ar compungido e suspirou: “Ah, Monsieur,desolé... C’est um secret du Chef!”. Nem sei se era verdade, mas pelo seu tom de voz, nada podia ser mais inacessível que o tal segredo do Chef.
Sente-se o mesmo ar exclusivista – e excludente – nos livros, revistas ou conferências de etnopsiquiatria. Além do relativismo radical, que torna a prática médica um equivalente tout court das práticas tribais ou folclóricas, a própria linguagem tende para o jargão dos iniciados em ciências sociais, pouco acessível ao médico. Têm-se a impressão de que os autores buscam um lugar na academia, antes de qualquer outra coisa. Parecem querer se situar, muito mais do que descobrir, e assim questões como diagnóstico e tratamento só lhes dizem respeito como virtualidades culturais, de existência relativa. Suas pesquisas se encontram muito mais nos níveis multi e interdisciplinares do que no transdisciplinar, e a sua esperança parecer ser a de – como pioneiros acadêmicos – criar uma nova disciplina universitária, e não a de enriquecer a psiquiatria. Essa atitude, naturalmente, os mantém totalmente afastados dos psiquiatras clínicos, e impede qualquer possibilidade de colaboração, bem ao contrário do que preconiza o seu discurso.
No correr dos milênios, o conhecimento humano nunca correu de forma livre e fluida na sociedade, mas se deu através de segredos e mistérios, que eram rigorosamente preservados e só passados adiante para os iniciados, após anos de preparação. Sociedades secretas guardavam os Mistérios Órficos, os Mistérios Mitraicos, os Mistérios de Elêusis. De descobertas astronômicas a receitas culinárias a tradição humana no repasse das informações sempre se deu por meio de segredos, cochichados ao pé do ouvido de pessoas escolhidas a dedo. Do “secret du Chef” dos restaurantes finos aos truques de magia e à tecnologia bélica, tudo que é especial envolve segredos. Não é à toa que nenhum filme de aventuras dispensa inscrições ininteligíveis, pergaminhos obscuros, textos ocultos e livros secretos, uma garantia de sucesso há dezenas de séculos. Mysterium Fidei.
O desenvolvimento da ciência moderna no século XVIII permitiu o acesso de todos ao conhecimento, quebrando os cadeados que o restringiam, laicizando-o e divulgando-o. A universidade foi passando de maçonaria a instituição pública. Esta acessibilidade tinha que ser mantida ativamente, no entanto, pois há uma forte inclinação inercial da universidade no sentido de tender sempre a retornar à sua origem acadêmica, religiosa e discricionária, sob outra forma, outra roupagem, outro discurso.
Toda academia, naturalmente, sempre tendeu e tenderá a se dedicar muito mais à preservação da sua estrutura de poder do que à produção de idéias. Nos últimos tempos, porém, essa máquina cuja função precípua parece ser a de impedir o pensamento crítico vem sendo aperfeiçoada para se tornar mais insidiosa e eficaz, prescindindo dos velhos métodos excludentes e repressivos. Ela age produzindo algo que toma o lugar da crítica, assemelhando-se a esta, num simulacro sutil e precoce. Assim, poder-se-ia dizer que o meio acadêmico tende a agir de forma análoga à das neurotoxinas que bloqueiam neurorreceptores agindo como falsos transmissores. É curioso observar que no processo educativo atual, cada jovem universitário é cuidadosamente instruído na crítica sem que jamais tenha adquirido qualquer conhecimento, por superficial que seja, do objeto criticado. Qualquer garoto rebelde pode então ficar feliz em ser uma “ovelha negra”, sem perceber que nesse rebanho, todas as ovelhas são negras, e balem da mesma forma.
Voltando à vaca fria, e reiterando um compromisso visceral com a prática médica e o verdadeiro “modelo” médico, tentei demonstrar que a psicopatologia fenomenológica – por não ser uma teoria, nem uma escola, mas uma postura ante a clínica – que teria condições de proporcionar não a tal integração do pensamento psiquiátrico que vem sendo esperada e dada como meta em todos os congressos científicos, mas a profundidade na observação e a coerência na prática.
Desenvolvendo uma atitude clínica fenomenológica, permitiríamos que mundo empírico aristotélico fixasse à terra firme da clínica o mundo platônico das idéias, impedindo que a tendência ao fundamentalismo isolasse a psiquiatria em setores estanques e estéreis, em permanentes jihads uns contra os outros. Por esse caminho, fora da idolatria do método, a antropologia psiquiátrica ou etnopsiquiatria não seria apenas mais uma das dezenas de subespecialidades psiquiátricas – aquela que trata das feitiçarias e das síndromes exóticas – mas estaria no cerne, na própria essência dessa visão transdisciplinar.
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[1]"Em mar aberto, um cefalópode não oferece resistência. Para lutar, é preciso um ponto de apoio. Mas cuidado ao mergulhador que lhe dê a oportunidade de se agarrar às rochas por dois ou três tentáculos!"
[2] “Pontifico e sou contestado, assim me divirto neste conflito de opiniões e sentimentos.”
[3] Refiro-me aqui ao ιatroV (iatros) – o médico no sentido grego da palavra – e não apenas ao portador de um diploma de medicina.
[4] Baseadas em supostos deficits, retornos aos níveis inferiores e atividades compensatórias. Daí termos como “primário”, “primitivo”, “regredido”, “indiferenciado”, dementia præcox, hebefrenia, hipofrontalismo, etc.
[5] Como disse o neurocientista Marco Iacoboni, pesquisador dos neurônios-espelho: “ ... ideological individualistic positions ... have made us blind to the fundamentally intersubjective nature of our own brains” (“posições ideológicas individualistas … fizeram-nos cegos à natureza fundamentalmente intersubjetiva dos nossos cérebros”).
[6] "Contos de fadas não dizem às crianças que dragões existem. As crianças já sabem que dragões existem. Contos de fadas dizem às crianças que os dragões podem ser mortos."
[7] Talvez não seja supérfluo ressaltar que esta postura fenomenológica - que procura compreender o homem como um todo - se deve sempre apoiar numa sólida experiência e num profundo conhecimento técnico. Assim, ela absolutamente nada tem a ver com muitas das posturas ditas “ecléticas”, que desnorteadas, oscilam entre “saladas” medicamentosas, pregações místicas ou religiosas, interpretações psicanalíticas “selvagens” e mesmo práticas “alternativas” ou soi-disant “holísticas”.
[8] "O importante é utilizar um enquadramento conceptual que não mais nos obrigue a escolhas ideológicas entre diferentes pontos de vista, sociológico, psicológico ou orgânico, mas sim que nos permita integrar essas abordagens."
[9] Sem falar nas terapias psiquiátricas ortomoleculares e homeopáticas.
[10] Desta postura também nem sempre escapam os psicólogos, pois existem aqueles que, não podendo legalmente medicar, não hesitam em aplicar pseudo-medicamentos, como “florais de Bach”, cromoterapia, tarô, mapas astrais, etc...
[11] Como já vimos, o segredo da gigantesca cadeia de fast food McDonald’s, que movimenta bilhões de dólares pelo mundo, é a mais absoluta rigidez em tudo o que se refere aos produtos do seu cardápio: quem viaja se espanta com o fato do Big Mac ter sempre exatamente o mesmo gosto, seja aonde for. O mesmíssimo princípio se aplica aos DSMs.
[12] "Scientific medicine in America — young, vigorous and positivistic — is today sadly deficient in cultural and philosophic background."
[13] É comum os pacientes nos dizerem no consultório, que sempre que surge um problema grave e imediato na família, como uma morte ou uma doença fatal ou incapacitante, eles saem da sua astenia e conseguem – superando os seus problemas neuróticos – assumir tarefas e resolver todos os problemas com surpreendente desenvoltura. Como disse St.-Exupéry, o desespero e a responsabilidade não se misturam. Assim a perplexidade, a tibieza e a frouxidão teórica também não são compatíveis com a medicina.
[14] “Para compreender o funcionamento desses sistemas terapêuticos, é essencial que as pesquisas sejam feitas numa perspectiva não apenas antropológica mas também clínica.” (Psychanalyse païenne, 1995, p.149)
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