Caminhoneiros que recorrem a anfetaminas e até a estimulantes à base de álcool ampliam risco nas estradas estaduais. No ano passado, acidentes aumentaram 132%
Mateus Parreiras
Publicação: 29/01/2012 04:00
Por trás de pálpebras inchadas e quase fechadas, os olhos vermelhos do caminhoneiro S.S.P., de 30 anos, suplicam rendição. O peso do sono se reflete nas rugas profundas de expressão e no esfregar constante das mãos no rosto. Num solavanco, seu olhar perdido e a posição fixa despertam de repente. Sem reagir a tempo, passa com as nove rodas do lado direito da carreta num buraco profundo da BR-251 – o veículo, de 15 metros de comprimento, transporta oito toneladas de geladeiras. “Estava pensando numa outra coisa, nem vi o buraco”, diz, tentando justificar o barulho e o estremecer da carreta. Nem o sono ou o furo que esvaziou um dos seus 18 pneus quando passou pela Bahia o impedem de seguir viagem. Já são 11 horas rodando por 650 quilômetros, desde Feira de Santana (BA) até Salinas, no Norte de Minas. O destino, Pirapora, está ainda nove horas à frente. Entre cochilos, curvas e ultrapassagens a mais de 100 quilômetros por hora, o sul-mato-grossense se arrisca a tal ponto que uma tragédia parece questão de tempo.
Caminhoneiros como S. ingressam diariamente nas rodovias de Minas Gerais em condições limite. Desafiam o sono, longas jornadas e estradas estreitas e esburacadas. Pior: recorrem cada vez mais a drogas para fazer frente a uma rotina extenuante.
Segundo o Ambulatório de Dependência Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), três em cada 10 caminhoneiros usam regularmente rebites e anfetaminas para circular insones por horas a fio pelas estradas brasileiras. Não bastasse isso, bebidas à base de cafeína concentrada e álcool, disfarçadas de “energéticos”, agora são oferecidas em pequenos tubos e consumidas aos montes em restaurantes de postos de abastecimento. Os efeitos, dizem especialistas, são tão devastadores quanto os dos estimulantes químicos.“São como rebites. A cafeína dessas bebidas é um estimulante do cérebro, assim como a anfetamina das pílulas. O álcool estimula num primeiro momento e a cafeína e outras substâncias mantêm a pessoa acelerada”, afirma o coordenador do ambulatório da UFMG, o psiquiatra Valdir Campos.
O resultado dessa combinação de sono, pressa e estimulantes é uma carnificina atestada por estatísticas. Noano passado, de acordo com a Polícia Militar de Minas Gerais, as estradas estaduais registraram 8.513 acidentes com veículos de carga. O número é 132% maior do que o de 2010, quando 3.666 caminhões e carretas se envolveram em tombamentos, batidas e atropelamentos. Nas rodovias federais os números também impressionam. Dos 30.032 veículos envolvidos em acidentes entre janeiro e novembro do ano passado, 11.345 (37,7%) eram caminhões e carretas, de acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF). O índice, maior que a média nacional, de 31%, só fica atrás dos carros de passeio, responsáveis por 15.314 (51%). Porém, a frota de carros no estado, que chega a 4.223.737, é 90% maior que a de caminhões e carretas, de 475.791 (11%). Num ambiente com apenas esses veículos, a participação dos transportes de carga em acidentes é três vezes maior que a dos automóveis.
Passagem obrigatória Com uma malha viária de 35.960 quilômetros, Minas é passagem quase obrigatória de caminhões que levam cargas para portos e metrópoles. No país, 60% do escoamento nacional se dá por via rodoviária. Para mostrar o submundo do transporte que move o Brasil recorrendo ao tráfico, prostituição e manobras irresponsáveis de caminhoneiros exaustos ou dopados, a reportagem do Estado de Minas seguiu de carona em carretas que trafegavam pelas BRs 381, 116, 251, 135 e 040. Entre as histórias mais recorrentes estão a de caminhoneiros que, responsáveis por conduzir caminhões com mais de 70 toneladas por horas seguidas, tentam enganar o sono usando estimulantes vendidos livremente em postos de gasolina, farmácias e paradas.
A desculpa é a mesma: é preciso ganhar tempo e faturar mais. “Se descarregar (o caminhão) antes para a transportadora, sobra tempo de lucrar levando outra carga por minha conta na volta. É aí que entra o rebite. Se tomar, dirijo até 24 horas direto”, conta o sul-matogrossense S. “Meu terror é ver carreteiro na contramão dormindo de olho aberto”, admite. Durante a viagem, ele só desperta plenamente na “marra”, quando, por exemplo, a BR-251 se abre em centenas de buracos entre Salinas e Montes Claros. As crateras com mais de um palmo de profundidade o obrigam a ziguezaguear pela pista realizando várias mudanças de marcha e manobras longas com o volante.
Abusos podem levar à morte
Publicação: 29/01/2012 04:00
A sonolência é apenas um dos efeitos dos rebites e outros tipos de substâncias sobre caminhoneiros que recorrem à química para viajar por mais tempo. O uso frequente desses produtos causa dependência e pode levar à morte. “Meu patrão, que era caminhoneiro antes de comprar a frota, chegou a ter quatro enfartes quando completou 40 anos. Tudo por causa dos rebites e do álcool que tomava para aguentar o tranco das viagens”, revela Simão (nome fictício), de 40 anos, outro caminhoneiro acompanhado pela reportagem do Estado de Minas pelas BRs 381 e 116.
“Em vez de ficar alerta, o caminhoneiro viciado terá sintomas prejudiciais, como cansaço excessivo, hipertensão, alteração da temperatura corporal, convulsão e problemas cardíacos, como infarto agudo do miocárdio”, enumera o psiquiatra Valdir Campos, do Ambulatório de Dependência Química da UFMG.
O abuso, garantem especialistas, leva também a atitudes descontroladas que podem resultar em acidentes mesmo quando o motorista não cai no sono. As pupilas dilatadas permitem que mais luz entre nos olhos. Quem roda à noite pode ter a visão ofuscada pelo brilho dos faróis de outros veículos, perdendo o traçado de uma curva, invadindo a contramão ou saindo da pista. “Há pacientes que tomam 40 comprimidos de uma vez. Dependendo da dose, do tempo de uso e da situação, o caminhoneiro pode desenvolver sintomas que lembram a esquizofrenia paranoide, uma doença psiquiátrica em que o paciente se sente perseguido. Acha que estão atrás dele”, conta Valdir Campos. “Por causa dessas sensações o sujeito toma decisões e atitudes intempestivas e arriscadas. Pior é que isso ocorre exatamente no momento em que está dirigindo uma carreta”.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o terceiro maior consumidor de anfetaminas do mundo, com média de dez doses diárias por mil habitantes, atrás apenas da Argentina e dos Estados Unidos, com 17 doses diárias. Além de caminhoneiros, alunos que precisam estudar por mais tempo, candidatos a concursos e até adolescentes que querem ficar mais magros usam anfetaminas.
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