quinta-feira, novembro 17, 2011

Caso Clínico - Depressão ansiosa e comorbidades



Profa. Dra. Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro
CRM-SP 36.139



Doutora em Medicina do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Médica psiquiatra do Departamento de Interconsultas da Associação Brasileira de Psiquiatria; Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos - Transtorno bipolar; Membro do Núcleo de Criminologia da Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo; Membro da Associação de Psiquiatria Americana





Identificação: ECSM, 36 anos de idade, sexo feminino, branca, casada, gerente bancária.
Queixa e duração: depressão, irritabilidade e impulsos alimentares exagerados há oito meses.
História clínica: paciente refere que há oito meses passou a apresentar exacerbação da depressão, irritabilidade, insônia, impulsos alimentares, intolerância com os filhos, com piora durante o período pré-menstrual. Quando a menstruação acabava, arrependia-se de tudo que fazia para os filhos e a si própria, pois estava feliz com a vida que tinha. Por orientação do ginecologista, tentou vários tratamentos sem sucesso, como troca de anticoncepcionais, suspensão do ciclo menstrual e não ingestão de café, chocolate e cigarros. O pior foi que tudo isso culminou com sua demissão no trabalho, que adorava.
Antecedentes pessoais (AP): mãe de dois filhos, teve depressão pós-parto na primeira gestação.
Antecedentes familiares (AF): pai depressivo, ansioso e hipertenso. Mãe com crises de pânico e obesidade mórbida.
Exames laboratoriais: exames resultaram normais, incluindo funções tireoidianas.
Diagnóstico: transtorno disfórico pré-menstrual feito pelo ginecologista.
Conduta e evolução: iniciou-se o uso de benzodiazepínico e diurético por três meses. Paciente referiu muita sonolência e continuava depressiva e com impulsos alimentares. Retornou, referindo não ter melhorado. Prescreveu-se fluoxetina 40 mg/dia. Entretanto, sentiu-se mais ansiosa e com insônia. Acordava várias vezes durante a noite, cansada e com olheiras. Realizou novos exames que indicaram ter aumento de colesterol, triglicérides e prejuízo da função tireoidiana. Foram administrados hormônio tireoidiano e sinvastatina. Continuou sem melhora do quadro. O ginecologista encaminhou-a ao psiquiatra.

Avaliação psiquiátrica

Na entrevista, a paciente mostrava-se ansiosa. Sua grande inquietação no momento era arrumar outro trabalho, mas preocupava-se por não estar bem. Pensamentos ruminantes de perda e ideação suicida começaram a ser constantes. Mexia as mãos sem parar, apresentava transpiração intensa nas axilas e mordia os lábios. Tinha receio de fazer as entrevistas e perceberem seu estado alterado. Estava com sobrepeso, colesterol aumentado e hipertensa. Glicemia e hemoglobina glicada estavam normais. Tomava levotiroxina sódica, 88 mcg/dia, sinvastatina, 20 mg/dia, e continuava a comer doces e chocolates sem freio, mas, na falta destes, comia até pedra (sic). Há quatro meses passou a tomar por conta própria diuréticos, abusava de laxantes e tinha medo apavorante de engordar como sua mãe. ECSM era casada, e seu marido sempre foi muito exigente, perfeccionista e controlador. Ele gritava com ela e seus filhos. Ela vivia em constante tensão com tudo em casa, pois, se algo estava fora do programado, era uma catástrofe. Todos tinham medo dele e de suas agressões verbais, tinham de deixar tudo em perfeita harmonia para não ter confusão. Ele estava com problemas financeiros em sua empresa, andava agitado e em descontrole total.

Nos primeiros meses, ECSM notou que piorava no período pré-menstrual e passou a apresentar exacerbação da depressão, choro fácil, irritabilidade, insegurança, sentimento de inutilidade, insônia, impulsos alimentares e intolerância com os filhos. Mas, segundo ela, agora era o mês inteiro, o tempo todo e não só no período pré-menstrual. Queixou-se da ingestão descontrolada recorrente de uma quantidade exagerada de alimentos, mesmo sem fome. No início, não percebia que comia em exagero, mas, com a fluoxetina, a ansiedade tomou conta dela e isso passou a ser parte importante de sua vida. Disse que a piora geralmente ocorria no momento de seu marido chegar em casa. Ela envolvia-se em um ritual descontrolado de ter de comer tudo que conseguisse. Secretamente, ingeria copiosas quantidades sem prazer, parando por mal-estar no estômago ou por interrupção externa pela chegada de um dos filhos. Reportava sensação de falta de controle sobre o comportamento alimentar. À noite, tomava por conta própria laxantes e diuréticos para não engordar como a mãe. Era apavorante
pensar em ficar obesa como sua mãe. Pensava em separar-se do marido, mas ficar só era desastroso.Dizia: "Ruim com ele, pior sem ele".

Havia procurado outro psiquiatra e não obteve melhora, mesmo com antidepressivos. Não queria tomar medicação "forte", pois isso poderia atrapalhar sua vida profissional, à qual gostaria de retornar.

Diagnóstico principal:
Transtorno de depressão ansiosa.

Comorbidades:
Transtorno disfórico pré-menstrual.
Transtorno alimentar do tipo purgativo, bulimia nervosa.
Hipertensão arterial moderada.
Hipercolesterolemia.

Discussão

O diagnóstico correto é fundamental para estabelecer a conduta médica adequada. Alguns pacientes não percebem os sintomas depressivos ou resistem a procurar um psiquiatra por preconceito e medo do estigma da doença mental1. Infelizmente, dedica-se pouca atenção aos sintomas psíquicos do paciente, seja em decorrência da restrição de informações e formação sobre transtornos mentais, seja pela limitação de tempo disponível na consulta.

Ao longo da vida, a pessoa pode vir a intensificar seu grau de ansiedade, e conforme os eventos da vida e sua dinâmica com o trabalho, as pessoas de seu relacionamento e suas expectativas, pode desenvolver um quadro depressivo ansioso2, como neste caso. Há um contínuo entre os sujeitos com baixa, moderada e alta ansiedades. Os sinais e sintomas da ansiedade patológica são compartilhados tanto por indivíduos normais quanto pelos ansiosos. Os mais frequentes são diarreia, vertigem, hiper-hidrose, reflexos aumentados, hipertensão, palpitação, dilatação das pupilas, inquietação, síncope, taquicardia, formigamento de extremidades, tremores, irritação estomacal, frequência ou urgência urinária.

A depressão ansiosa aponta para a presença comum de ansiedade nos estados depressivos e, especialmente, sua maior visibilidade quando é menos saliente. Afirma-se que os pacientes com esse tipo de quadro são mais comuns em contextos médicos gerais (Figura 1).






O diagnóstico pode vir a ser dificultado por algumas características de doenças físicas, como agitação motora, cansaço, perda de energia, quadros tensionais dolorosos, prejuízo da memória e da capacidade de concentração, insônia, alteração no apetite e peso, tanto para mais como para menos.

Esses sintomas são desvalorizados, por vezes subdiagnosticados e não tratados adequadamente mesmo em indivíduos com transtorno psiquiátrico associado. A sobreposição de sintomas pode complicar o diagnósticoe, consequentemente, o tratamento e o prognóstico3. Outros agravantes para o portador de depressão ansiosa são os acontecimentos da vida e os eventos estressantes, como para ECSM, que repercutiram na mente e no cérebro, propagando-se pelo corpo e atingindo tanto a saúde física como a psíquica. A forte influência de conflitos intrafamiliares, o medo da quebra de laços afetivos, acidentes no trânsito, violências verbal e física, conflitos sexuais, desemprego, pressões no trabalho e consumo de drogas favorecem a exacerbação de transtornos depressivos ansiosos.

Em razão da complexidade do caso de ECSM, é importante recordar que três importantes circuitos permitem, nas mulheres, a comunicação entre o cérebro e os demais órgãos: o eixo hipotálamo-pituitária-tireoidiano, o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal e o eixo hipotálamo-pituitária-ovariano3. A ocorrência de alterações específicas dos mecanismos de comunicação entre neurotransmissores (dopamina, noradrenalina e serotonina) e hormônios (cortisol, tireoide e estrógeno) provoca mudanças no estado emocional, mental e no humor, particularmente nas fases do ciclo reprodutivo da vida, incluindo período pré-menstrual, gestação, período pós-parto, durante a perimenopausa e na pós-menopausa. O reconhecido impacto dos hormônios sexuais femininos sobre o funcionamento do psiquismo tem favorecido às mulheres, que podem ser diagnosticadas e tratadas de maneira adequada.

A tensão pré-menstrual (TPM) é motivo de grande preocupação socioeconômica na saúde pública, pois pode afastar as mulheres de suas atividades, por apresentarem sintomas incapacitantes. Em menos de 5% dos casos, há uma forma mais severa denominada transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM). A intensidade e o tipo de sintoma podem variar de um ciclo para o outro.

Acompanhar os sintomas por meio de diários ou gráficos específicos por pelo menos dois ciclos menstruais auxilia a avaliação dos sintomas ao longo de cada ciclo menstrual. Por não existirem testes objetivos para o diagnóstico, a anamnese completa, incluindo históricos psiquiátricos e familiares de doenças mentais, é importante. A redução dos níveis de neurotransmissão cerebral de serotonina (5-HT) é considerada um fator indutor de alteração no controle de impulsos, humor depressivo, irritabilidade e de aumento de episódios de voracidade (craving), muitas vezes por chocolate4, semelhantes aos sintomas observados em ECSM. Nos episódios bulímicos, ocorre a ingestão descontrolada recorrente de quantidade exagerada de alimentos, que não visa apenas a saciar a fome, mas atende a uma série de estados emocionais ou situações estressantes5. São verdadeiras "orgias" alimentares, nas quais as pacientes secretamente ingerem copiosas quantias sem prazer, parando por mal-estar físico, por terminar o estoque ou por interrupção externa pela chegada de alguém, como descrito por ECSM. As pacientes reportam sensação de falta de controle sobre o comportamento alimentar. Geralmente são alimentos altamente calóricos, como biscoitos recheados, leite condensado, pipoca, sorvete, chocolates, doces, bolos, salgadinhos e pizzas. Ultrapassam de 2 a 3 mil calorias por episódios compulsivos recorrentes.

Os médicos precisam ser informados sobre incidência, etiologia e manifestações físicas e psíquicas da depressão ansiosa e transtornos alimentares e as possíveis implicações no diagnóstico e no tratamento.

Outra queixa de ECSM foi a insônia, que é considerada sintoma e uma condição coexistente (insônia secundária) e, menos frequentemente, uma desordem primária. Ambas as formas podem ter caráter transitório, duram apenas alguns dias e semanas ou podem tornar-se crônicas. Insônia caracteriza-se por sono de qualidade insuficiente manifestado por sintomas diurnos ou noturnos, entre eles dificuldade em adormecer, despertar precoce ou sono não reparador. Estudos sugerem que as dificuldades no sono podem ocorrer em associação com modificações hormonais que são características da mulher, incluindo aquelas que acompanham a fase lútea do ciclo menstrual e também no climatério (Figura 2).





Propostas terapêuticas

Uma gama variada de intervenções terapêuticas pode ser utilizada para os sintomas pré- -menstruais, como o ginecologista já havia utilizado. Quando não há melhora significativa, deve-se utilizar psicofármacos, e desde a década de 1990, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRSs) têm sido preconizados como primeira linha. A escolha do ISRS vai depender da habilidade do médico6. Uma preocupação frequente no grupo feminino é o aumento de peso com a medicação e interferência na atividade sexual. Após extensa avaliação psiquiátrica, foi dada à ECSM a explicação de seus possíveis diagnósticos, como seriam tratados e da necessidade de uma abordagem também psicoterápica. Também foi orientada quanto ao controle da alimentação, à redução gradual de medicações diuréticas e laxativas, além de uma participação ativa na própria melhora.

Introduziu-se um ISRS, o cloridrato de sertralina 75 mg/dia. A paciente não desejava usar medicação controlada pelo receituário azul ("faixa preta eu não tomo"). Sua mãe era viciada em faixa preta. O uso crônico de benzodiazepínicos é responsável e relaciona-se às alterações do desenvolvimento da tolerância, dependência e sintomas de abstinência, que diretamente se associam ao tempo e à duração de uso. Alerta importante aos pacientes que costumam se automedicar.

Expostas essas informações adicionais e acompanhando a paciente, a melhora de ECSM foi gradativa, mas sempre com evolução favorável. Ela aderiu ao tratamento proposto. A dose de sertralina foi ajustada até 200 mg/dia e, em cinco meses, conseguiu um novo emprego de meio período. Com a psicoterapia, foi modificando sua atitude com o marido e seus filhos. Todos puderam ter um ambiente doméstico tranquilo. Seu peso ainda não normalizou plenamente, masnão tem mais impulsos alimentares descontrolados. Sabe que é uma questão de tempo para ter melhor equilíbrio.

Caso clínico extraído do material "Desafios em SNC - Transtornos depressivos" - Julho 2011

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