quarta-feira, novembro 03, 2010

A neurobiologia da adição no DSM-5

Comportamentos de vício poderão integrar uma categoria única

Décadas de pesquisas evidenciam que comportamentos compulsivos, como comer e jogar de forma abusiva, apresentam alterações cerebrais semelhantes - e tão deletérias quanto - às da dependência por substâncias tóxicas. Os grupos de investigação do DSM-5, a ser lançado oficialmente em 2013, estudam substituir as categorias "Uso de substâncias" e "Dependência" por "Adição e transtornos relacionados", e eventualmente incluir, entre eles, a "paixão patológica" e o "uso compulsivo da internet" com o objetivo de ampliar as fronteiras terapêuticas.

Na primeira semana de maio de 1997, a revista Time publicou na capa a figura simbiótica de um peixe com o rosto humano atraído pela isca de um anzol, em alusão ao provérbio popular "o peixe morre pela boca". A pesquisa médica revelava ao público leigo os mecanismos neuroquímicos do vício e apresentava a dopamina como protagonista à frente de cerca de cinquenta neurotransmissores coadjuvantes na adição ao álcool, à nicotina, às drogas e, também, ao sexo. A ciência começou a estudar o comportamento aditivo na década de 1930, quando o vício era condenado moralmente e entendido como falha de caráter, a ser combatido com repressão. Somente depois do surgimento formal dos critérios diagnósticos (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM), em 1952, a adição passou a ser reconhecida como problema de saúde. A pesquisadora Anna Rose Childress, do Departamento de Psiquiatria, da Universidade da Pensilvânia, Philadelphia, lembra que os transtornos relacionados ao vício foram inicialmente abordados sob a categoria "personalidade sociopática" na primeira edição do DSM e, na revisão seguinte, de 1968, eram ainda considerados transtornos de personalidade (DSM-II). O abuso de substâncias ganhou uma categoria independente em
1980 (DSM-III), onde permaneceu por quase 30 anos.

As ações terapêuticas e preventivas levaram muito tempo até integrar a prática clínica e se tornarem alvo de políticas públicas, impulsionadas principalmente pelo oneroso dispêndio ao sistema de saúde norte-americano. As restrições à venda de álcool para adolescentes e à publicidade de bebidas e cigarros são acontecimentos do final do século 20.

O vício é uma "doença do cérebro"

Os seres humanos desenvolveram um sistema neurobiológico de motivação altamente efetivo que encoraja, de forma seletiva, comportamentos que aumentam a sobrevivência da espécie, explica o pesquisador Joseph Frascella, da Divisão de Neurociências Clínica e Pesquisa Comportamental, do National Institute on Drug Abuse, Rockville, Maryland, Estados Unidos. A recompensa motiva o indivíduo a repetir a ação e recriar o feedback positivo. "O problema é que os seres humanos desenvolveram muito mais rapidamente os recursos externos do que o cérebro pôde acompanhar. Não vivemos mais em um ambiente em que temos de nos preocupar em ingerir calorias suficientes. Calorias e outras substâncias que dão prazer se tornaram muito mais concentradas e altamente acessíveis". As pesquisas sobre a atividade do cérebro, o comportamento e a genética desafiam as fronteiras diagnósticas e apontam para a presença de vulnerabilidades neurobiológicas subjacentes comuns aos casos de toxicodependência e comportamentos patológicos de adição (nonsubstances disorders), afirmou Frascella.

Em comparação com as revisões anteriores, o DSM-5 analisa se os vícios podem ser definidos além do consumo de drogas, uma mudança fundamental na forma como esses transtornos foram vistos anteriormente. Em 2013, a nosologia psiquiátrica poderá deixar de compartimentar o uso compulsivo de substâncias tóxicas como único fator para o comportamento de compulsão patológica. "Estamos começando a colher os frutos dos avanços impressionantes em neurociência com quadros mais detalhados dos riscos subjacentes, disparadores do vício e os aspectos funcionais da doença", declarou a diretora do NIDA, Nora D. Volkow, que liderou diversas sessões do NIDA. O minicongresso incluiu temas como tabagismo, mulheres e o abuso de drogas, atualização sobre os medicamentos para a dependência e estratégias de gestão do tratamento em longo prazo para a dependência de opioides. "O vício é uma doença do cérebro", escreve Volkow - que foi a principal fonte para a reportagem da Time, há 13 anos - no atual website do NIDA.

Entender a obesidade "do pescoço para cima"

Joseph Frascella apresentou os circuitos neurobiológicos da compulsão alimentar durante o simpósio do NIDA sobre a neurobiologia da obesidade. "Olhar a obesidade 'do pescoço para cima' é um conceito importante", disse o médico. "Do ponto de vista científico, as substâncias do abuso causam alterações no sistema dopaminérgico do cérebro. Em estudos de imagens cerebrais, podemos ver um decréscimo dos receptores de dopamina, por exemplo, com a cocaína, o álcool, a heroína e outras substâncias de abuso. Pudemos reconhecer alterações muito similares no cérebro de pacientes com obesidade mórbida", afirmou o pesquisador. Ele informa que, no entanto, o padrão do efeito do abuso de substâncias no cérebro não é o mesmo para todos os tipos de obesidade. Os estudos de imagem combinados a outras fontes de dados fundamentam, porém, uma base teórica para considerar os alimentos como potencial substância de abuso. "Comer alimentos ricos em calorias tende a beneficiar o sistema interno de recompensa. Quando os alimentos hipercalóricos, altamente concentrados, alcançam o sistema de recompensa cerebral, o impacto é imediato e intenso. O cérebro passa a reenviar sinais incessantes com a mensagem 'isso é bom, faça de novo'", diz. Como resultados desses eventos, as pessoas são conduzidas a repetir o comportamento.

Os psiquiatras lidam rotineiramente com pessoas que fazem uso abusivo de drogas e comportamentos de vício como fazer compras, jogar ou a compulsão pela pornografia. Da perspectiva neurobiológica, ocorre o mesmo com o abuso da ingestão de alimentos. Ele nota que as pessoas com obesidade mórbida relatam uma grande dificuldade em controlar a ingestão de alimentos. A sintomatologia é muito semelhante àquela de outros vícios, enfatiza o pesquisador. O grupo de Frascella mostra como as tecnologias de imageamento do cérebro podem ser usadas para analisar os novos limites de classificação para os vícios não relacionados a substâncias tóxicas, nas três formas diferentes consideradas para serem incluídos na nosologia emergente. O jogo compulsivo parece o mais provável para integrar a categoria de vícios para o DSM-5, pois estão bem estabelecidas as graves consequências negativas para a vida do paciente, a influência genética (o problema é altamente transmissível e frequentemente comórbido com outras adições a substâncias) e a presença de alterações nas respostas dos circuitos de recompensa e desequilíbrio na regulação frontal - quando expostos a um cenário de jogo - nas imagens cerebrais desses indivíduos.

Em contraste com o jogo, onde todas as pessoas com o fenótipo provavelmente seriam incluídas na mesma categoria diagnóstica, o fenótipo de obesidade, mensurado pelo índice de massa corporal (IMC), é reconhecido como heterogêneo. Nem todas as pessoas que estão acima do peso são "viciadas em comida". Os pesquisadores acreditam que futuros estudos sobre as imagens da neuroquímica cerebral combinadas com dados genéticos podem ajudá-los a "ir além do IMC". Eles pretendem identificar as diferenças entre indivíduos obesos, considerando, por exemplo, a baixa disponibilidade de receptores D2, em paralelo com as drogas de adição. "Esses indivíduos podem responder às intervenções terapêuticas para a toxicodependência, que podem ajudar a embotar a recompensa dos alimentos doces altamente saborosos e com alto teor de gordura", acredita o pesquisador. O grupo estuda, ainda, a inclusão de estados patológicos relacionados à "paixão romântica" e à "atração sexual intensa", que afetam o circuito de recompensa do cérebro e compartilham algumas semelhanças clínicas com as toxicodependências.

Por exemplo, o apego romântico intenso é "normal", por definição, mas pode ser intensamente eufórico, com a forte busca da recompensa, a exclusão de outras
atividades cotidianas, e pode levar à tomada de más decisões (incluindo crimes passionais).

REFERÊNCIAS

Berrettini W, Bierut L, Crowley TJ, Cubells JF, Frascella J, Gelernter J, et al. Setting priorities for genomic research. Science. 2004 Jun 4;304(5676):1445-7; author reply 1445-7.
Frascella J, Potenza MN, Brown LL, Childress AR. Shared brain vulnerabilities open the way for nonsubstance addictions: carving addiction at a new joint? Ann N Y Acad Sci. 2010
Feb;1187:294-315.
Madeleine Nash J, Park A. Addicted: why do people get hooked? Time Magazine. May 5, 1997.
Moeller SJ, Maloney T, Parvaz MA, Alia-Klein N, Woicik PA , Telang F, Wang GJ, Volkow ND, Goldstein RZ. Impaired insight in cocaine addiction: laboratory evidence and effects on cocaine-seeking
behaviour. Brain. 2010 May;133(Pt 5):1484-93. Epub 2010 Apr 15.
Riggs PD, Thompson LL, Tapert SF, Frascella J, Mikulich-Gilbertson S, Dalwani M, Laudenslager M, Lohman M. Advances in neurobiological research related to interventions in adolescents
with substance use disorders: research to practice. Drug Alcohol Depend. 2007 Dec 1;91(2-3):306-11.
Volkow ND, Montaner J. Enhanced HIV testing, treatment, and support for HIV-infected substance users. JAMA. 2010 Apr 14;303(14):1423-4.

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