segunda-feira, julho 19, 2010

A influência das dimensões religiosa e espiritual na qualidade de vida e na saúde dos que praticam orações ou participam de cultos religiosos, segundo

Apresentação

Em 1994, a Associação Psiquiátrica Americana incluiu no Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais [Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV)], no item "outras condições que podem ser um foco de atenção clínica", uma nova categoria diagnóstica: Problemas Espirituais e Religiosos. Segundo os autores do artigo "Religious or spiritual problems"1, a nova categoria foi contemplada porque "continuar a negligenciar as questões espirituais e religiosas perpetuaria as falhas que a psiquiatria tem cometido nesse campo: falhas de diagnóstico e tratamento, pesquisa e teoria inadequadas e uma limitação no desenvolvimento pessoal dos próprios psiquiatras".

O reconhecimento de que problemas religiosos e espirituais podem ser o foco de uma consulta e do tratamento psiquiátrico e não, necessariamente, atribuíveis a um transtorno mental já havia sido abordado por Lukoff et al. no artigo "Toward a more culturally sensitive DSM-IV: psychoreligious and psychospiritual problem"2, informavam os autores da carta ao editor da Revista Psiquiatria Clínica, por ocasião da criação do Núcleo de Estudos Espirituais e Religiosos (Neper), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-FMUSP)3, o primeiro a funcionar no País a partir de 2000. "As dimensões espirituais e religiosas da cultura estão entre os fatores mais importantes que estruturam a experiência humana, as crenças, os valores, o comportamento e os padrões de adoecimento", escreveram Alexander Moreira de Almeida et al. na carta ao editor.

"Apesar disso, a psiquiatria, em seus sistemas diagnósticos, bem como em sua teoria, sua pesquisa e sua prática, tende a ignorar ou a considerar patológicas as dimensões religiosas e espirituais da vida." Um dos fundadores do Neper e, atualmente, o principal estudioso brasileiro do tema espiritualidade e saúde mental, o psiquiatra Alexander Moreira de Almeida, está hoje na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde é professor adjunto de Psiquiatria e Semiologia da Faculdade de Medicina. Formado por essa mesma universidade, com residência e doutorado em psiquiatria pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em religião e saúde feito na Duke University (Carolina do Norte, Estados Unidos), sob a orientação do estudioso do tema da religiosidade, Harold Koenig, Alexander Moreira de Almeida é coordenador do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes), fundado por ele em Juiz de Fora no final de 2006, quando voltou do pós-doutorado nos Estados Unidos. Na entrevista a seguir, ele comenta a trajetória das pesquisas brasileiras sobre espiritualidade e saúde mental desde seu regresso.

Efeito poderoso

Primeiro, é importante colocar em perspectiva histórica essa questão da pesquisa da espiritualidade na área de saúde mental, diz ele. "Da metade do século XIX ao início do século XX, a tendência bastante forte era considerar a religiosidade como um aspecto negativo da cultura humana. Imaginava-se que a fé religiosa seria um resquício de primitivismo, um instrumento de negação da realidade, de fuga psicológica, que estaria associado com a neurose." Antes disso, nos séculos anteriores, havia, ao contrário, uma profunda associação entre práticas de saúde e de cura e as questões de religiosidade, lembra o psiquiatra, acrescentando que não é à toa que uma das profissões mais antigas do mundo é a do xamã, meio sacerdote, meio curandeiro. Mas cerca de 20 a 25 anos atrás, pesquisadores dos Estados Unidos começaram a fazer estudos epidemiológicos de boa qualidade para avaliar a relação entre religiosidade e saúde. "Teve muita resistência a essa investigação, muitas pessoas sofreram restrições em suas carreiras por conta dela, mas com o tempo esses estudos começaram a apresentar resultados bastante robustos, que iam na contramão daquilo que se pensava", afirma. De modo geral, o envolvimento religioso estava associado a maiores índices de bemestar e de saúde física e mental.

Pesquisa Médica Neurociências - É possível dar uma ideia do que essas pesquisas revelaram?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - A associação da religiosidade com indicadores de saúde e doença, como mortalidade, níveis de depressão uso de drogas, tempo de sobrevida em caso de doença grave, melhor qualidade de vida de indivíduos com doença física, evidenciando o quanto a religiosidade influenciava o desenvolvimento do quadro clínico. Essa é a linha mais consistente dedicada à relação de religiosidade e saúde. Existem outras linhas de estudos que estão crescendo também, como um estudo que não só tenta entender essa associação, mas busca explicar seus mecanismos. Outra área que começa a ser mais investigada é a da prece em grupo e sua influência na saúde dos indivíduos. Um grupo de indivíduos ora para outro grupo que não sabe que está recebendo a oração - essa é uma linha de pesquisa. Outra linha é a que procura levantar no que consistem as experiências espirituais. No Brasil, por exemplo, existem vários grupos dedicados a esses estudos, como o Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos, que fundamos em 1999, no IPq-FMUSP, que foi o primeiro grupo da área médica no Brasil a investigar esse tipo de tema. Hoje, o núcleo se chama Proser, que significa Projeto de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade, e é coordenado pelo Dr. Frederico Leão. Existe um grupo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS, que tem estudado a religiosidade e a espiritualidade relacionadas à saúde, outro na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o grupo da UFJF, que mantém o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde conhecido como Nupes.

Pesquisa Médica Neurociências - E quais os temas que esses grupos vêm estudando?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - O Brasil vem investigando, de modo bastante consistente, o uso de drogas e religiosidade, questões mentais e religiosidade,
qualidade de vida e espiritualidade e como a religião é utilizada para lidar com problemas. Tem um grupo na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) estudando essa questão.

Pesquisa Médica Neurociências - Quais os resultados dessas pesquisas que poderiam ser mencionados?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Notamos um resultado interessante da Dra. Ana Catarina Elias, da Unicamp, que investigou a intervenção psicoterapêutica construída através da integração das técnicas de relaxamento mental e visualização de imagens mentais com o conceito de espiritualidade, em pacientes terminais, jovens e adultos, e concluiu que melhora a qualidade de vida no processo de morrer e contribui para a morte serena. Essa foi a tese de doutorado dela. O estudo do Prof. Paulo Dalgalarrondo, também da Unicamp, buscou uma associação entre religiosidade e o uso de álcool e outras drogas e verificou que quanto maior o grau de religiosidade, principalmente entre jovens estudantes, menor o uso de álcool e outras drogas. Temos uma colega, aqui de Juiz de Fora, a Dra. Mirna Granato Salomão Nagib, que acabou de fazer o mestrado sobre religiosidade e uso de álcool entre a população brasileira. Essa pesquisa trabalhou com informações de 3 mil pessoas, do Brasil inteiro, e mostrou que a religiosidade está associada com menos da metade dos problemas de uso de álcool em relação às pessoas que não são religiosas.

Pesquisa Médica Neurociências - E qualquer religiosidade?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Qualquer religiosidade, apesar de que entre os evangélicos essa associação é mais forte ainda, porque o problema com o uso do álcool é menor entre eles.

Pesquisa Médica Neurociências - Por conta da restrição ao consumo de álcool que é pregado entre os evangélicos?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Exatamente por isso, existe uma restrição ao álcool, então, entre os indivíduos que consideram a religião muito importante, a dependência de álcool é de 9%. Os que não consideram a religião como algo tão importante, a dependência é de 31%.

Pesquisa Médica Neurociências - Esse dado saiu do estudo da Dra. Mirna Granato Salomão Nagib?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - O dado é da Dra. Mirna, de seu estudo em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que coordenou o primeiro levantamento nacional sobre o uso de álcool pela população brasileira e disponibilizou os dados para a comunidade científica. Foi um grande estudo, com 3 mil pessoas, uma amostra de qualidade. Tem também o mestrado feito pelo Alexandre Corrêa, que fez um estudo com a Dra. Márcia Scazufca, pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia e Terapêutica Psiquiátrica do Hos pital das Clínicas de São Paulo e professora do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. A Dra. Márcia fez um estudo com 1.500 idosos de baixa renda, que investigou a prevalência de transtornos mais comuns, como depressão e ansiedade. Indivíduos que frequentavam grupos religiosos tinham a metade da probabilidade de transtornos mentais em relação aos idosos que nunca frequentavam eventos religiosos. Esse resultado manteve-se mesmo controlando o fator "suporte social", que poderia ser um mecanismo explicativo, mas parece que não foi. Uma pesquisa sobre qualidade de vida e religiosidade feita no Rio Grande do Sul investigou como as pessoas religiosas lidam com problemas. O chamado coping religioso (coping, do inglês, que significar lidar) tem mostrado melhor prognóstico nos casos de pessoas com doenças crônicas. Esse é outro tipo de pesquisa que tem sido feito.

Pesquisa Médica Neurociências - Como a psiquiatria avali a atualmente o tema dos estados de transe e possessão e o tratamento de pacientes com transtornos mentais que participam de religiões em que esses estados fazem parte da prática espiritual (caso do candomblé, da umbanda, de religiões espíritas e também de determinados cultos protestantes)?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Esta é outra linha de pesquisa que investiga experiências espirituais, com que eu trabalho mais diretamente. Estamos trabalhando com vivências mediúnicas, espirituais, que embora pareçam manifestações psicóticas, dissociativas, como ouvir ou ver coisas, ou experiências de transe, não necessariamente estão associadas a problemas de saúde mental. Muito pelo contrário. Segundo uma avaliação que fizemos de experiências de mediunidade, a prevalência de transtornos mentais em pessoas desses grupos religiosos é menor do que na população geral. Essa é outra área que estamos investigando, com dois alunos de doutorado, aqui no Nupes da UFJF.

Pesquisa Médica Neurociências - E quando há algum transtorno mental, que tipos de transtorno vocês identificam?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Todos os tipos de transtorno. Pode ser depressão, ansiedade ou esquizofrenia.

Pesquisa Médica Neurociências - Qual o conhecimento que esses estudos sugerem para intervenções clínicas baseadas na espiritualidade do paciente? Existe uma orientação sobre como abordar o tratamento desses sujeitos?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Sem dúvida, mas só para fazer um fechamento sobre os estudos mencionados. De modo geral, o maior envolvimento religioso está associado a melhores indicadores de saúde física e mental e qualidade de vida. Isso é o que as pesquisas vêm mostrando. Embora haja uma linha divisória a esse respeito, da qual vou falar mais para frente. E os estudos que começam a investigar mais as experiências espirituais estão percebendo que embora essas vivências possam se assemelhar a um quadro psiquiátrico, à primeira vista, têm um efeito benéfico sobre o indivíduo, tanto que eles gostariam que os profissionais da saúde abordassem o tema da espiritualidade nas consultas.

Pesquisa Médica Neurociências - E qual a conduta recomendada para abordar a espiritualidade dos pacientes?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - É preciso colher a história espiritual do paciente, ao fazer a entrevista, se possível tomando a iniciativa de perguntar, por exemplo, se ele tem alguma religião, se essa vivência religiosa é importante para a vida dele, se influencia na saúde dele, como acha que influencia etc. O paciente tende a considerar o atendimento de melhor qualidade quando é indagado a esse respeito, sente-se mais acolhido e mais compreendido. Porque ele sente vontade de falar sobre esse assunto, geralmente, mas não vê espaço ou não sabe se deve abordar o tema com o médico. O fato positivo é que a religião é essencial para a vida dele e lhe dá forças e esperança para prosseguir no tratamento e lidar com a doença.

Pesquisa Médica Neurociências - Essas vivências espirituais, quando envolvem mediunidade e transe, podem até ser profiláticas, não? Quer dizer, podem fazer bem ao paciente e não o contrário?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Sim, mas essa é uma área, na verdade, muito pouco investigada. Por isso, deve-se tentar mostrar ao paciente que a espiritualidade ou a religiosidade são importantes para nós, se for importante para ele. É preciso deixar claro que respeitamos esse aspecto, e isso pode ser feito por qualquer profissional, sendo ele religioso ou não.

Pesquisa Médica Neurociências - Dando ao paciente essa abertura, você consegue que ele se entregue mais ao tratamento?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - Exatamente. Outra coisa que se pode fazer é orientar o paciente que tem alguma prática espiritual, seja ela de visualização, seja de leitura espiritual, a cultivar essa prática se lhe faz bem o vínculo espiritual. Afinal, este é o nosso papel: encorajar o paciente a manter as práticas que ele acha úteis ou que lhe tragam algum benefício.

Pesquisa Médica Neurociências - Pelo que foi dito aqui, não é possível afirmar que religiões ou práticas espirituais contribuem mais para o surgimento de neuroses, psicoses ou vivências emocionais de estresse diante da vida?

Dr. Alexander Moreira de Almeida - De modo geral, o que ocorre é o inverso, as práticas religiosas contribuem mais com a qualidade de vida e a saúde. A espiritualidade pode dar um sentido para a vida e até para o sofrimento pelo qual a pessoa, eventualmente, esteja passando, e a religiosidade parece estar associada com melhor suporte social, em razão da relação do indivíduo com o grupo religioso. As práticas de oração e meditação também tendem a diminuir o nível de estresse. Esses são alguns dos mecanismos pelos quais a religião pode impactar de forma positiva na saúde. A prática religiosa pode ter impacto negativo na saúde quando faz oposição ao tratamento médico e leva a pessoa a abandoná-lo, porque prega a intolerância e o dogmatismo.

REFERÊNCIAS

Alminhana LO, Moreira-Almeida A. Personalidade e religiosidade/espiritualidade
(R/E). Rev Psiquiatr Clín. 2009;36(4):153-61.
Elias ACA, Giglio JS, Pimenta CAM, El-Dash LG. Programa de treinamento
sobre a intervenção terapêutica "relaxamento, imagens mentais e
espiritualidade" (RIME) para re-significar a dor espiritual de pacientes
terminais. Rev Psiquiatr Clín. 2007;34(suppl.1):60-72.
Sanchez Zila van der Meer, Nappo SA. A religiosidade, a espiritualidade e
o consumo de drogas. Rev Psiquiatr Clín. 2007;34(suppl. 1):73-81.

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