O amor no foco da pesquisa neurocientífica.
Apresentação
Amor é uma função do amadurecimento humano, afirma o psiquiatra e psicanalista Jorge W. Amaro, em um artigo de 2006, publicado na revista de Psiquiatria Clínica. "É uma função exclusiva da parte amadurecida da personalidade", o especialista esclarece, lembrando que a criança necessita de amor, mas ainda não ama; apenas tem o potencial de desenvolver amor, que irá se deteriorar se não for devidamente estimulado pelo meio ambiente. "Por isso as pessoas imaturas necessitam, mas não amam", escreve Amaro. Ao mesmo tempo que o homem maduro tem uma função neutra, de observador, perante o mundo, e de curiosidade genuína pelo conhecimento - é um componente científico de sua personalidade -, este desenvolvimento se contrapõe a outras áreas adultas e infantis de sua personalidade, dominadas por desejos, emoções e memórias baseadas no que Amaro chama de estruturas aprisionantes de pensar e agir.
Estruturas que têm a ver com a infância e com as relações com pai, mãe e irmãos e com sentimentos inerentes a elas, de inveja e gratidão, egoísmo e generosidade, vingança e perdão, intolerância e tolerância, entre outras ambivalências, armazenadas no inconsciente. O desenvolvimento do lado transcendente do ser humano, de seu amadurecimento espiritual e do amor depende da experiência com a maternagem, também afirma Amaro, ao definir ser esta a forma de amor mais simples: um amor pelo qual a mãe renuncia muitas vezes às próprias necessidades para cuidar do recém-nascido, perdoando sua irracionalidade. "Numa relação adulto e adulto, é necessário que essa maternagem esteja presente", acrescenta o psicanalista, "para que ambos possam ser continentes das crianças recíprocas, ajudando-as a crescer de modo a que se possa manter a vida do relacionamento, a partir do contato com a verdadeira intimidade do par em relação". O amor é resultado dos sentimentos de tolerância, humildade, gratidão, generosidade, noção de limites, capacidade de ser continente da criança que cada um abriga, resume Amaro em seu artigo sobre "Mal-estar e amor". Esta edição de jornal Pesquisa Médica em Neurociências explora o tema de mal-estar e amor, por assim dizer, ao focalizar o ciúme, esse sentimento tão controverso, que está presente nas relações amorosas sob variado espectro, desde épocas remotas. entrevista
Dra. DONATELLA MARAZZITI
A delicada interação entre o amor e o ciúme
Estudo neurobiológico acerca do amor e das emoções a ele relacionadas mostra a possibilidade de o ciúme e a felicidade viverem em harmonia, mas também investiga as origens da relação patológica, quando o ciúme perde provavelmente a qualidade de zelo para se tornar paranoico, agressivo e atroz
Há dez anos, quando realizava uma pesquisa sobre transtorno obsessivo-compulsivo, a psiquiatra e bioquímica italiana Dra. Donatella Marazziti constatou que pacientes obsessivos e compulsivos possuíam comportamentos parecidos com o de pessoas apaixonadas. Ao examiná-los clinicamente, ela observou semelhanças no transporte de serotonina entre eles. Desde então, quase toda sua pesquisa vem sendo direcionada ao amor e às emoções a ele relacionadas. Donatella dirige, atualmente, o Laboratório de Psicofarmacologia da Universidade de Pisa, na Itália, tem mais de 350 artigos publicados e é autora do livro A Natureza do Amor, de 2007, best-seller em diversos países e recentemente publicado no Brasil pela editora Atheneu. Seu último livro, E Vissero per Sempre Gelosi & Contenti (E viveram felizes e ciumentos para sempre), deve ser lançado no País ainda este ano. Em sua atual pesquisa sobre o ciúme, que poderia se tentar definir como o "medo da infidelidade do parceiro", a psiquiatra estuda casos normais e patológicos do sentimento, mostrando como ele pode ser controlado. Ela questiona a abordagem evolucionista do ciúme, na qual o homem estaria principalmente preocupado em ter certeza de sua paternidade, enquanto o ciúme da mulher corresponderia à sua necessidade de apoio para a criação da prole. Não obstante, Donatella argumenta que alguns estudos recentes sobre o assunto mostraram que a influência dos fatores socioculturais são predominantes em relação à preocupação com a perpetuação da prole.
Assumindo a dificuldade de cravar uma definição do amor, em sua obra, Donatella conceitua esse sentimento, que se altera e nos altera a cada instante, como um sistema integrado, um processo biopsicossocial, vale dizer, uma entidade dinâmica, em movimento, e que evolui (este é o significado do termo "processo"), envolvendo o ser humano em sua totalidade biológica, psicológica e social. "A finalidade do amor seria promover a aproximação entre dois indivíduos, com o objetivo de favorecer não só a reprodução da espécie, mas também o sentido de segurança, alegria e bem-estar, através da atenuação das sensações desagradáveis provocadas pela ansiedade e pelo estresse, nessa concepção", afirma.
Nem todas as consequências do amor são positivas para o ser humano, reconhece a psiquiatra. E alguns problemas gerados nas relações amorosas se assemelham a transtornos psiquiátricos, não só por aspectos envolvendo o comportamento, mas também em reação a determinadas drogas. A instabilidade emocional é típica do amor maníaco, por exemplo, comenta Donatella: "lembra o temperamento ciclotímico, caracterizado por fortes oscilações de humor e, nos casos extremos, remete à alternância entre as fases típicas do transtorno bipolar". Dependendo dos indivíduos envolvidos, uma experiência amorosa pode provocar alteração de humor semelhante àquela provocada por drogas como cocaína e anfetamina. Donatella revela que, apesar disso, em sua experiência clínica nunca encontrou
um paciente disposto a abrir mão deste "sentimento privilegiado, elevado muitas vezes a eixo e sentido da própria existência".
Na entrevista a seguir, a especialista cita alguns tópicos da conferência que apresentou no dia 7 de novembro, "A Neurobiologia do Ciúme", no XXVII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em São Paulo.
Pesquisa Médica Neurociências - Apesar da complexidade do tema e da dificuldade de se definir o amor, como ele é observado pelo estudo neurofisiológico?
Dra. Donatella Marazziti - Podemos dizer que, nesse sentido, o amor depende da atividade de algumas moléculas. Apesar de existirem algumas hipóteses, há poucos dados reais com base em imagens cerebrais acerca de uma construção bioquímica do amor. Em meu livro, mostro que há, sim, uma distinção bem demarcada do funcionamento neurológico entre a fase inicial de uma relação amorosa, isto é, a paixão e seus fortes efeitos fisiológicos, e a etapa seguinte, quando a relação já está consolidada.
Pesquisa Médica Neurociências - Como essas hipóteses poderão ser verificadas em um futuro próximo?
Dra. Donatella Marazziti - Algumas técnicas, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a ressonância nuclear magnética (RNM), prometem bons resultados. No entanto, estamos em uma fase ainda muito inicial: os primeiros experimentos foram realizados solicitando-se aos indivíduos que imaginassem situações tristes ou felizes, ou mesmo mostrando a eles a fotografia do parceiro e imagens neutras. Ainda não é possível concluir muita coisa a partir dos resultados desses estudos, que não são unívocos, mas estamos certos de que daqui a algum tempo assistiremos a um uso cada vez mais amplo das tomografias e ressonâncias nos âmbitos clínico e de pesquisa.
Pesquisa Médica Neurociências - No "amor doente", quais os principais tipos de transtornos que podem surgir? É possível tratá-los clinicamente?
Dra. Donatella Marazziti - Menciono uma série de comportamentos patológicos oriundos de experiências amorosas. Como eu escrevo em meus livros, a maioria das patologias relacionadas ao amor vem de transtornos psiquiátricos ou de personalidade, que podem ser tratados com drogas ou psicoterapias.
Pesquisa Médica Neurociências - O ciúme é um sentimento inerente a qualquer relação amorosa?
Dra. Donatella Marazziti - O ciúme está ligado ao amor. Não existe relação amorosa sem ciúme. O que não quer dizer que o ciúme seja um sentimento necessariamente negativo.
Pesquisa Médica Neurociências - Você pensa que o ciúme é um sentimento que as pessoas não gostam de aceitar?
Dra. Donatella Marazziti - No livro A Natureza do Amor, relato que, ao apresentar um questionário sobre o ciúme a algumas pessoas, quase ninguém aceitou responder. Após alterar seu nome para "questionário sobre relações afetivas", o problema foi resolvido. Ao menos os italianos não gostam de admitir que podem ser ciumentos.
As razões para isso são tanto culturais e sociológicas quanto psicológicas, do mesmo modo que em qualquer outro lugar.
Pesquisa Médica Neurociências - Existem diferenças entre as relações amorosas e o ciúme nas culturas ocidental e oriental?
Dra. Donatella Marazziti - Na cultura ocidental, o ciúme é considerado como uma fraqueza individual ou como um resquício de uma velha forma de pensamento. Já no Oriente, o ciúme é uma necessidade para os homens.
Pesquisa Médica Neurociências - E as causas do ciúme são sempre as mesmas ou elas variam de acordo com o contexto cultural?
Dra. Donatella Marazziti - Existem fatores tanto psicológicos quanto culturais para o ciúme. É evidente que, em sociedades onde manifestações acentuadas de ciúme são reprovadas, o sentimento tende a ser mais "controlado". No entanto, expressões psicológicas de ciúme nunca deixarão de existir.
Pesquisa Médica Neurociências - Quais os principais efeitos fisiológicos do ciúme no organismo?
Dra. Donatella Marazziti - Fisiologicamente, o ciúme normal não é diferente de uma reação a um estímulo de ansiedade.
Pesquisa Médica Neurociências - E o ciúme patológico? Quais são seus traços principais e como é possível diagnosticá-lo?
Dra. Donatella Marazziti - Patológica é toda forma de ciúme que se baseie na suspeita infundada de infidelidade do parceiro e que seja capaz de modificar
pensamentos, sentimentos e comportamentos. Quando uma pessoa está totalmente convencida de que o parceiro a está traindo, sem nenhuma prova concreta, estamos diante de uma distorção da realidade e, portanto, diante de um transtorno psicótico que se define como delírio ou paranoia do ciúme - transtorno que não é raro em alcoolistas.
Pesquisa Médica Neurociências - Ele pode ser medicado?
Dra. Donatella Marazziti - Normalmente, o ciúme patológico é causado por depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, síndrome do pânico ou paranoia. Como sabemos, existem drogas adequadas para o tratamento desses transtornos.
Pesquisa Médica Neurociências - E o que você acha da medicação para a atenuação de problemas oriundos de relações amorosas?
Dra. Donatella Marazziti - Deve haver um bom senso na avaliação de cada caso. A medicação deve ser usada normalmente quando os problemas amorosos são causados por transtornos psiquiátricos ou podem levar a algum.
REFERÊNCIAS
Marazziti D. A natureza do amor: conhecendo os sentimentos para vivê-los melhor. São Paulo: Atheneu, 2007.
Marazziti D. E viveram ciumentos e felizes para sempre: uma abordagem do ciúme no cotidiano e de como
lidar com ele de forma saudável. Porto Alegre: Luminara, 2009.
Marazziti D, Roncaglia I, Del Debbio A, Bianchi C, Massimetti G, Origlia N, et al. Brain-derived neurotrophic
factor in romantic attachment. Psychol Med. 2009;39(11):1927-30.
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